O cheiro de mofo e decomposição em locais inesperados.
O Mofo Que Nos Resta
O cheiro subiu pelos degraus de madeira rangente, um perfume denso e úmido que se agarrava às narinas como teia de aranha. Dona Lurdes, com suas mãos nodosas e a pele marcada pelo sol da janela da cozinha, apertou o passo. Não era o cheiro familiar e reconfortante da terra molhada do seu pequeno quintal, nem o aroma adocicado de bolo assando, que ela tanto esperava sentir ali. Era algo mais profundo, mais insidioso. Mofo, sim, mas tingido de uma decomposição que a fazia remeter a outras coisas.
Ela empurrou a porta do quarto de seu filho, a maçaneta fria sob sua palma trêmula. O sol de fim de tarde, filtrado pela cortina desbotada, desenhava sombras longas e poeirentas no chão. A cama estava desfeita, o edredom amassado como se ele tivesse acabado de sair dali, mas o silêncio era pesado, absoluto. E o cheiro… ah, o cheiro. Ele se intensificava no quarto, misturando-se ao perfume barato de desodorante que ele usava e a um indício acre de algo que ela não queria identificar.
Leonardo se fora há sete meses. Levou consigo a risada alta que preenchia a casa, a música alta tocando no radinho quebrado, o barulho das chuteiras na calçada. Levou consigo a esperança, deixando para trás a saudade que, como o mofo, se instalava nos cantos esquecidos, nas frestas da alma.
Dona Lurdes caminhou até a escrivaninha, seus olhos fixos em uma pilha de contas e papéis amarelados. Ali, entre embalagens de cigarro vazias e restos de comida petrificada, o odor era quase insuportável. Um guardanapo amassado, com uma mancha escura que ela preferia não examinar de perto. Um copo de plástico, ainda com um resíduo pegajoso no fundo. E, por baixo de tudo isso, uma sensação de abandono que exalava mais forte que qualquer mofo.
Ela sabia que devia arrumar. Limpar. Jogar fora. Mas cada objeto parecia um vestígio, um pedaço daquele tempo que, por mais doloroso que fosse, era a única coisa que restava dele. Como apagar as marcas de um homem que um dia existiu ali, naquele espaço, com toda a sua juventude irrequieta e seus sonhos ainda incertos?
Um som distante de buzina a fez sobressaltar. Talvez fosse o Seu Antunes, do armazém, voltando para casa. Ou talvez um dos rapazes da rua, com sua moto barulhenta. O cotidiano seguia, implacável, alheio à quietude que se instalara naquele quarto.
Dona Lurdes sentou-se na beira da cama, o colchão afundando sob seu peso. Olhou para a parede, para as marcas de giz de seu neto pequeno, deixadas em uma visita fugaz. Ali, em cima da cama, o cheiro parecia um pouco menos agressivo, misturando-se ao aroma sutil de lavanda que ela usava em seus lençóis. Mas ainda estava ali, a lembrança olfativa da desordem, da negligência, da vida que se esvaía em pequenos pedaços.
Ela fechou os olhos, tentando encontrar algum conforto. Mas o mofo, ele não escolhia lugares óbvios para se manifestar. Ele se infiltrava, sutil, invadia espaços que deveriam ser sagrados. E, naquele quarto, ele parecia ser a única prova concreta de que Leonardo um dia existiu.
Um suspiro escapou de seus lábios. O que fazer com um cheiro que se tornara um fantasma? Como limpar a decomposição que pairava no ar, na memória, na alma? Ela não tinha resposta. Apenas o cheiro. E a certeza de que, enquanto ele existisse, Leonardo não estaria completamente esquecido. Por mais que isso a assustasse.
Por: Ricardo Soares Guedes

Deixe um comentário