Uma corrente de ar frio que atravessa um cômodo fechado.
O quarto de Dona Lourdes, ali na Vila Prudente, em São Paulo, sempre teve um cheiro peculiar de alfazema e passado. Hoje, porém, havia algo mais. Um ar que não pertencia a ela, a seus lençóis de algodão que jamais viram um tecido sintético, nem mesmo às poeiras que dançavam nos raios de sol que teimavam em invadir a fresta da cortina. Era um frio. Um frio que não vinha da janela, que estava fechada há anos por medo de correntes traiçoeiras.
“Parecia que alguém tinha aberto a porta da geladeira bem no meio da sala”, confidencia seu Manoel, vizinho de longa data e o primeiro a notar a mudança. Ele, que às seis da manhã já está na calçada regando as samambaias, sentiu. “O ar ficou pesado, sabe? De um jeito que arrepiava até a alma.”
Dona Lourdes, 87 anos, uma senhora de mãos enrugadas que já viram muito da vida, não entende de correntes de ar frias que teimam em ignorar barreiras. Para ela, o que sentiu foi mais um aviso, um sussurro do tempo que não perdoa. “O corpo avisa, meu filho”, ela diz, com a voz fina e cansada, enquanto mexe o café amargo que ninguém mais bebe. “O corpo avisa quando o que está lá fora não é só vento. É algo mais… um prenúncio.”
O quarto em questão é o do seu neto, Tiago. Onde ele cresceu, rabiscou paredes com giz de cera, sonhou com futebol e com um futuro que nunca chegou. Tiago partiu há cinco anos. Uma doença rápida, cruel, que levou a alegria do lar e deixou um silêncio que pesa mais que qualquer móvel antigo.
Naquele dia, a porta do quarto de Tiago estava fechada. Dona Lourdes não entrava ali há meses. O medo de se deparar com as lembranças, com a ausência palpável, a paralisava. Mas o ar frio… o ar frio não se importou com o protocolo do luto. Ele entrou, como se a tranca fosse um convite, como se a solidão do espaço fosse um solo fértil.
“Eu estava na cozinha, preparando o almoço”, conta Marina, a filha de Dona Lourdes, a única que ainda vive na casa e cuida da mãe. “De repente, um ar gelado subiu pela escada. Não era o vento da rua, eu conheço esse vento. Era diferente. Me deu um arrepio na espinha que parecia um choque. Fui ver o que era, achei que a janela do quarto do Tiago tinha aberto sozinha.”
Ela descreve a sensação como um “sopro fantasma”. Ao abrir a porta, o frio se intensificou por um instante, como se algo tivesse sido liberado. Mas o quarto estava como sempre: a cama arrumada, o pôster de um time de futebol desbotado, a estante com livros empoeirados. Nenhum sinal de abertura, nenhuma fresta para o vento. Apenas o vazio e a fragrância de alfazema que agora disputava espaço com um aroma sutil, quase imperceptível, de um perfume masculino que Marina não reconhecia.
“Fiquei ali, parada. Me senti observada, sabe?”, Marina sussurra, os olhos marejados. “Como se ele estivesse ali, mas não de um jeito que a gente gosta. Um frio que não aquece, um ar que não respira.”
A história se espalha pela Vila Prudente. Pequenos eventos que, somados, criam uma aura de mistério. A dona da venda da esquina, Dona Célia, conta que sentiu o mesmo ar frio atravessar sua casa, logo pela manhã. Um dia antes. “Eu achei que tinha sido a brisa do mar chegando mais forte, coisa rara por aqui. Mas um frio que te faz tremer por dentro? Isso é outra coisa.”
Para alguns, é apenas uma anomalia climática, um fenômeno de convecção inesperado em um ambiente fechado. Para outros, como Dona Lourdes, é a confirmação de que há mais mistérios no universo do que a ciência pode explicar. O quarto do Tiago se tornou, de repente, um ponto de interrogação no meio de uma vida marcada pela rotina e pela dor.
Aquele ar frio, passageiro e inexplicável, não trouxe consigo apenas a sensação gélida. Trouxe a pergunta: o que, ou quem, atravessou a barreira do silêncio e do tempo para se manifestar naquele cômodo fechado? E por que, naquele quarto específico, o quarto de um jovem que partiu cedo demais?
Por: Felipe Bastos Guimarães

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