O Ladrão de Contornos
O cheiro de café passado na hora, amargo e reconfortante, era o primeiro alarme do dia de Dona Elvira. Não o despertador, que há anos jazia empoeirado na mesinha de cabeceira, mas o aroma que se espalhava pelos cômodos estreitos do sobrado na Gamboa. A luz do sol, ainda tímida, pintava listras douradas na parede descascada da cozinha, traçando os contornos familiares das rachaduras que ela aprendera a ignorar, ou talvez, a amar.
Há mais de sessenta anos, Dona Elvira observava essa mesma cozinha. Vira as paredes mudarem de cor com tintas baratas, presenciara a pia de mármore ceder lugar a uma de inox reluzente e, mais recentemente, a geladeira antiga ser substituída por um modelo moderno que zumbia incessantemente. Mas eram as mudanças sutis, as que não exigiam grande esforço de adaptação, que a intrigavam.
Certa manhã, enquanto preparava o café, notou algo estranho na janela. O vaso de samambaia, sempre posicionado exatamente na borda interna do parapeito, parecia ter se deslocado uns centímetros para a esquerda. Era impossível. Dona Elvira era metódica. Nada mudava de lugar sem sua permissão. Ajeitou-o de volta, um leve tremor nas mãos, e atribuiu à própria distração.
No dia seguinte, o pote de biscoitos, que ficava alinhado à borda do balcão, estava ligeiramente torto. E o dia depois, a toalha de prato, dobrada com precisão milimétrica, pendia um pouco mais para fora do gancho. Eram incômodos mínimos, imperceptíveis para qualquer um que não tivesse a vida inteira gravada nas mesmas quatro paredes.
Era como se a casa estivesse se remanejando em silêncio, nos interstícios do seu sono, nos breves momentos em que seus olhos se desviavam. Um ladrão de contornos, que roubava a exata posição das coisas sem deixar rastro.
Seu neto, Léo, um jovem artista com olhos de observador atento, vinha visitá-la aos sábados. Ele notava as pequenas mudanças, mas com um fascínio diferente. “Vó, olha! O quadro do Chico Bento parece que tá mais inclinado hoje!”, dizia, com um sorriso maroto. Dona Elvira apenas meneava a cabeça, um nó apertando a garganta. Ela não via arte ali, mas um distanciamento incômodo. O que mais poderia estar se movendo sem seu conhecimento?
Um dia, Léo trouxe uma câmera antiga, uma daquelas de filme, para presentear a avó. “Pra você registrar as coisas, Vó. Pra não deixar que nada mude sem você ver.” Dona Elvira aceitou, o metal frio na palma da mão, um gesto de carinho que, ironicamente, a fez sentir-se ainda mais frágil.
Ela começou a fotografar. As rachaduras, o vaso de samambaia, o pote de biscoitos. Documentava cada detalhe, com a esperança de capturar o ladrão em flagrante. Mas as fotos só confirmavam o que ela já sabia: as coisas estavam ali. O problema não era o *que* estava, mas o *onde*.
Os dias se tornaram um ritual de observação meticulosa. A atenção de Dona Elvira se afiou, tornando-se uma ferramenta quase dolorosa. Ela passava horas sentada na mesma cadeira, olhando para o mesmo ponto, absorvida pela imobilidade aparente. Mas a imobilidade era uma ilusão.
Em uma tarde chuvosa, enquanto observava a luz fraca banhar o chão da cozinha, um pensamento arrepiou sua espinha. E se não fosse o ladrão? E se fosse ela? E se o tempo, implacável e silencioso, estivesse apenas a empurrando suavemente para longe da exatidão que ela tanto prezava? A paisagem familiar, moldada por anos de rotina, estava, de fato, se alterando, mas não por um agente externo. A própria percepção dela, a própria linha do tempo, estava escorrendo entre seus dedos.
Ela olhou para o álbum de fotografias, a coleção de momentos congelados. O vaso de samambaia, o pote de biscoitos, as rachaduras que ela não mais reconhecia como as mesmas de ontem. E o sorriso de Léo, congelado em um momento de inocente fascínio.
Dona Elvira fechou o álbum. O cheiro de café pairava no ar, mas algo mais se anunciava, um aroma sutil e inominável. Era o cheiro do crepúsculo, do fim de um dia e do prenúncio de outro, onde os contornos das coisas, e talvez da própria memória, continuariam a mudar, imperceptivelmente, enquanto ela não estivesse prestando atenção. E ela se perguntou: o que mais, em sua vida, havia se movido sem que ela soubesse? E se o mais doloroso era aceitar que, mesmo olhando, alguns movimentos são impossíveis de deter?
Por: Elara Vance, a Arquivista do Crepúsculo

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