Uma sombra que não pertence a ninguém.

Uma sombra que não pertence a ninguém.

O Som de Ontem

A fumaça do cigarro se enrolava no ventilador de teto preguiçoso, dançando em círculos lentos sobre a cabeça de Dona Lurdes. O cheiro acre de nicotina misturava-se ao aroma persistente de fritura que emanava da cozinha, um perfume familiar de tardes em Sepetiba. Na TV, um programa de auditório berrava em volume moderado, como um incômodo constante, mas quase imperceptível, na rotina de quem já não esperava mais sorpresas.

Dona Lurdes não tinha por que esperar. A vida lhe ensinara a contentar-se com o que vinha, sem muita fanfarra. O divórcio viera como uma tempestade de verão, súbito e arrasador, deixando para trás apenas os cacos de um casamento que ela, teimosamente, tentara recompor. Os filhos cresceram e voaram, cada um para seu canto, deixando um eco de vozes infantis que pareciam ainda ressoar nos cômodos vazios. Agora, restavam ela, o ventilador, a fumaça e a sombra.

A sombra não era nova. Existia há meses, talvez anos. Ela aparecia em diferentes cantos do apartamento, ora colada à parede do corredor, ora esticada sobre o chão da sala, contornando os pés da mesa de centro com uma forma indefinida. Não era a sombra de um móvel, nem a de Dona Lurdes, que ela podia ver projetada claramente no chão em outras ocasiões. Era uma sombra à parte, escura, sem contornos definidos, como se alguém tivesse esquecido de levá-la consigo ao sair.

No início, Dona Lurdes a ignorara. A vida era cheia de coisas mais concretas para se preocupar: as contas que chegavam, o joelho que rangia, o pão que, vez ou outra, esquecia de comprar. Mas a sombra persistia, um incômodo mudo que, aos poucos, começou a ganhar espaço em seus pensamentos. Ela se perguntava de onde vinha, o que a criava. Teria alguma coisa quebrado, algo invisível, e projetado aquela silhueta fantasmagórica? Ou seria algo… mais?

Às vezes, quando a solidão apertava mais forte, Dona Lurdes sentia uma estranha vontade de conversar com a sombra. Não em voz alta, claro. Apenas um pensamento silencioso, uma pergunta lançada ao vazio: “Quem é você?”. A sombra, naturalmente, não respondia. Apenas se movia com as mudanças de luz, um lembrete constante de algo que não se encaixava.

Certa tarde, enquanto varria o chão da sala, o pensamento veio mais forte. Ela parou, com a vassoura suspensa no ar, e encarou a sombra que se espreguiçava perto da janela, como um gato preguiçoso. A luz do sol poente a atravessava de leve, revelando um tom mais cinza do que negro.

“Sabe, sombra”, ela pensou, com uma voz que era apenas um sussurro em sua mente, “você me lembra um pouco o meu pai.”

O pai de Dona Lurdes era um homem de poucas palavras, um trabalhador braçal que passava o dia sob o sol escaldante, e voltava para casa exausto, com os ombros curvados e a expressão cansada. Ele nunca foi de demonstrações efusivas de afeto, mas Dona Lurdes sempre soube que ele a amava. Era um amor silencioso, construído em pequenos gestos: um bilhete deixado na geladeira com o seu lanche, a forma como ele ajustava o cobertor dela nas noites frias. E ele também tinha uma certa… ausência. Uma sensação de que, mesmo presente, uma parte dele estava em outro lugar, perdida em pensamentos ou em lembranças.

Dona Lurdes sorriu, um sorriso melancólico que nem chegou aos olhos. Talvez a sombra fosse isso. Um eco de todas as ausências, de todas as pessoas que passaram por sua vida e deixaram um rastro, uma falta, uma sombra que não se dissipava completamente. Talvez fosse a sombra de todos os “e se”, de todos os caminhos não percorridos, de todos os sonhos adiados.

Ela retomou a varrição, o barulho da vassoura raspando no piso preenchendo o silêncio. A sombra continuou ali, imóvel, como se compreendesse. E Dona Lurdes, pela primeira vez em muito tempo, não se sentiu completamente sozinha. Porque, no fim das contas, uma sombra que não pertence a ninguém, talvez pertença a todos nós. E, às vezes, o peso silencioso dessa ausência compartilhada é o que nos mantém mais próximos. A porta da rua rangeu, anunciando a chegada do carteiro. Dona Lurdes caminhou até ela, a sombra acompanhando seus passos, um fio escuro e silencioso a ligá-la ao que um dia foi.


Por: Elara Vance, a Arquivista do Crepúsculo

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