Um jardim que floresce com plantas de cores anormais e perfumadas.
A Cor que o Silêncio Tinha
Dona Ivone sempre foi de poucas cores. Seus vestidos, a fachada da casa modesta em São Gonçalo, até mesmo o jeito de olhar o mundo pareciam tingidos de cinza. Morava sozinha desde que Seu Juca se fora, deixando para trás o eco de suas gargalhadas e um jardim que, antes de sua partida, era a pura ostentação de uma vida florida e barulhenta. Agora, o jardim, como ela, definhava. As rosas perdiam o viço, as samambaias pareciam doentes.
Foi numa tarde especialmente pesada, com o céu prenunciando mais um calor abafado e a lembrança de Seu Juca mais pungente que o usual, que ela decidiu ir até o pequeno mercado da esquina. O jornaleiro, Seu Manuel, com seu bigode sempre um pouco torto, a cumprimentou com aquele jeito expansivo que ela nunca soube retribuir com a mesma intensidade. Ao lado de um monte de laranjas murchas, um pequeno vendedor ambulante, um garoto magro com olhos mais antigos que seus poucos anos, oferecia saquinhos de sementes.
“Sementes mágicas, dona Ivone!”, disse o menino, com uma voz que parecia carregar o pó de todas as estracias. “Floram cores que o sol nunca pintou. E o perfume… ah, o perfume faz a gente sonhar.”
Dona Ivone, cética como era, sentiu um impulso estranho. Talvez fosse o calor, a solidão, ou a forma como os olhos do menino brilhavam com uma verdade que ela não conseguia decifrar. Comprou um saquinho, sem muita convicção, e o guardou na sacola de compras, junto com o pão e o leite.
Ao voltar para casa, o sol já se punha, lançando longas sombras que pareciam tentar abraçar a casa de Dona Ivone. Ela sentou na varanda, o saquinho de sementes esquecido no colo. O cheiro da terra úmida, depois da garoa que havia caído mais cedo, misturava-se ao cheiro de poeira e melancolia que pairava no ar. Com um suspiro, decidiu que era melhor plantar algo do que ver aquilo mofar na gaveta.
Seguiu as instruções vagas do garoto: um pouco de terra, um canto sombreado, água. E esperou. Os dias se arrastaram na rotina silenciosa. O lamento do ventilador, o som distante do trânsito, o ocasional latido de um cachorro. Nada mudava.
Até que, numa manhã cinzenta, Dona Ivone notou algo diferente. Um broto. E não era o verde apagado que ela esperava. Era um tom de azul elétrico, vibrante, que parecia emanar luz própria. No dia seguinte, outro broto surgiu, desta vez de um violeta profundo, quase negro, com veios de um dourado luminoso. Aos poucos, o jardim abandonado começou a ganhar vida de uma maneira que desafiava toda a lógica.
As flores que desabrochavam não tinham nome nos seus velhos livros de botânica. Havia pétalas que pareciam feitas de veludo líquido, em tons de laranja que cantavam com o sol, e azuis tão intensos que podiam engolir a noite. E o perfume… Ah, o perfume! Era algo que Dona Ivone nunca sentira antes. Um misto de jasmim e chuva em terra seca, com toques de canela e algo mais, algo que a fazia lembrar de um abraço esquecido, de um sonho antes de adormecer.
Vizinhos curiosos começaram a passar pela calçada. Dona Geni, a vizinha da frente, com sua voz estridente, parou para admirar. “Mas que beleza, Ivone! Nunca vi nada igual! De onde você tirou essas sementes?”
Dona Ivone apenas sorria, um sorriso novo, que não era mais tingido de cinza. “Do pequeno vendedor da esquina”, dizia, a voz embargada pela emoção.
O jardim se tornou um ponto de encontro. As pessoas vinham, não mais apenas pela curiosidade, mas pelo anseio de respirar aquele ar perfumado, de ver aquelas cores que pareciam sussurrar segredos. Jovens casais vinham para fotos, adultos suspiravam lembrando de amores antigos, crianças corriam fascinadas, seus dedos hesitantes em tocar aquelas pétalas etéreas.
Dona Ivone, antes reclusa, encontrava-se conversando, compartilhando o que via e sentia. A dor da perda de Seu Juca não desapareceu, mas agora era temperada por uma beleza inesperada, por uma esperança que florescia com a mesma intensidade das plantas.
Uma noite, sentada na varanda, sob a luz suave das flores que pareciam brilhar no escuro, Dona Ivone pensou no menino vendedor. Teria ele conhecimento da magia que vendia? Ou seria ele apenas um mensageiro, um elo entre o ordinário e o extraordinário? Ela sentiu uma urgência em encontrá-lo novamente, em saber mais.
Mas no dia seguinte, o pequeno vendedor ambulante havia sumido. A banca estava vazia, o espaço ocupado por frutas comuns, sem o brilho especial. Dona Ivone procurou, perguntou, mas ninguém parecia se lembrar dele com clareza. “Ah, aquele menino… veio e foi, como o vento”, disseram.
O jardim continuava ali, exuberante, um oásis de cores e perfumes em meio à monotonia urbana. Dona Ivone, agora com um brilho nos olhos que rivalizava com o das suas flores mais vibrantes, cuidava dele com amor. E todas as noites, antes de adormecer, ela sentia o perfume peculiar invadir seus sonhos, e se perguntava se as cores que o silêncio agora tinha eram um presente, um lembrete, ou apenas o início de algo ainda maior, que ela ainda não tinha a cor para nomear.
Por: Catarina de Assis Mendonça

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