O crepitar de uma lareira que parece articular palavras.

O crepitar de uma lareira que parece articular palavras.

O Crepitar das Conversas Invisíveis

A sala estava banhada por um ouro pálido, tingido pelos últimos resquícios de um sol preguiçoso que teimava em se despedir do dia. Do lado de fora, o vento sussurrava um lamento abafado pelas venezianas fechadas, anunciando a friagem que se avizinhava. Mas dentro da casa de Dona Aurora, o calor reinava. A lareira, a velha senhora de pedra no canto da sala, pulsava com vida, lançando fagulhas dançantes que pintavam sombras fugidias nas paredes.

Dona Aurora, encolhida em sua poltrona de vime gasta, acariciava o tecido puído da colcha que a cobria até os ombros. Aos setenta e dois anos, o mundo parecia ter se reduzido àquele círculo de luz e calor. Seus olhos, outrora vívidos como duas jabuticabas maduras, agora eram poças de um azul desbotado, perdidas em um labirinto de memórias.

O crepitar da lareira era mais do que um som; era uma melodia familiar, um compasso que ditava o ritmo de suas noites. E hoje, mais do que nunca, parecia articular palavras. Não com a clareza de uma voz humana, mas com a sutileza de um segredo compartilhado. Um estalar mais agudo, um chiado prolongado, um suspiro de brasa moribunda. Cada som era uma nota em uma sinfonia que só ela, Dona Aurora, parecia decifrar.

“Ah, meu Pedro”, murmurou ela, mais para as chamas do que para si mesma. Um pedaço de lenha cedeu com um estalo vibrante, e Dona Aurora sorriu com um fio de melancolia. “Você sempre gostou do calor do fogo. Lembra daquela noite de São João, quando você tentou assar um pedaço de mandioca na brasa e quase botou fogo na cortina?”

A brasa se incandesceu, e um grito seco ecoou, como a risada de Pedro, alta e despreocupada. Dona Aurora fechou os olhos, revivendo a cena com uma nitidez cruel. Aquele riso que se calou cedo demais, deixando um silêncio insuportável em sua vida.

O fogo continuou seu diálogo mudo. Um pedaço de carvão rolou, soltando uma chuva de fagulhas douradas. “E a Maria…”, a voz de Dona Aurora falhou. Maria, a neta, a que foi embora para a capital em busca de um futuro que ela, Dona Aurora, nunca pôde lhe oferecer. “Ela disse que ia me ligar todo dia. A vida lá é corrida, não é?”

Um sopro de ar mais forte fez a chama dançar freneticamente, como um abraço repentino e urgente. Dona Aurora apertou a colcha, o peito apertado. As promessas se perdiam no tempo, no asfalto, nas luzes artificiais de uma cidade que consumia seus filhos.

O crepitar se tornou mais lento, mais resignado. As palavras pareciam se desfazer em cinzas. Dona Aurora sentiu um nó na garganta. Não era apenas a saudade de Pedro e Maria, mas a angústia da solidão, a sensação de que a vida, como o fogo da lareira, estava chegando ao seu declínio, deixando para trás apenas brasas e cinzas.

De repente, um chiado mais forte, como um chamado. Dona Aurora virou o rosto. Na moldura escura da porta da sala, a silhueta de um menino. O gato preto, chamado Fagulha, com seus olhos verdes e penetrantes, a encarava. Ele miou, um som curto e questionador.

Dona Aurora soltou uma risada fraca, que se misturou ao último suspiro do fogo. Ela estendeu a mão para Fagulha. “É, meu Fagulha. Talvez você entenda melhor essas conversas do que muita gente por aí.”

O gato pulou em seu colo, ronronando satisfeito. O crepitar agora era um murmúrio suave, quase um adormecer. Dona Aurora fechou os olhos novamente, o calor do animal em seu colo, o som do fogo em seus ouvidos. Estaria o crepitar realmente articulando palavras, ou era apenas a sua própria alma, buscando companhia nas reverberações da memória e na promessa tênue do presente? Ela não sabia. Mas, por agora, o silêncio não era absoluto. E isso, por si só, era um pequeno consolo.


Por: Catarina de Assis Mendonça

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