Um lago cujas águas escondem um segredo sombrio.

Um lago cujas águas escondem um segredo sombrio.

O Silêncio da Água Negra

A poeira, fina como talco, cobria o caminho que levava à represa. O sol de meados de novembro castigava o cerrado, transformando as poucas folhas verdes em espectros acobreados. Era o tempo em que a seca apertava, e o nível da água baixava, revelando a barriga de concreto rachada da barragem. Para Dona Lurdes, porém, o lago de Itacuruçá nunca foi apenas um espelho d’água. Era um guardião.

Aos setenta e poucos anos, Dona Lurdes sentava-se na varanda de sua casa modesta, a poucos metros da margem. Os olhos, azuis desbotados pela idade, percorriam a paisagem que mudava com a estação. Vivia ali desde que era menina, quando a represa ainda era um projeto distante, um murmúrio de progresso que mudaria para sempre a paisagem de sua infância. Agora, a paisagem mudara. E ela, também.

Seu neto, o Pedro, quinze anos, era um raio de sol num dia sombrio. De barba rala, a voz ainda teimando em engrolar, ele era a promessa de um futuro que Dona Lurdes temia não ver concretizado. Ele gostava de pescar, de ficar horas sentado na beira da represa, lançando a linha na esperança de fisgar um pacu gordo. Mas, nos últimos tempos, Pedro andava distante. Os olhos jovens, antes cheios de curiosidade, agora carregavam uma sombra que Dona Lurdes reconhecia de longe. Era a sombra do segredo.

O segredo era a água. Não a água límpida que as chuvas davam à represa, mas a água em seus dias de sede. Em dias como aquele, quando o sol rachava a terra e a evaporação deixava a superfície espelhada e calma, era possível ver. Ou melhor, quase ver. Um contorno vago, uma forma que a mente teimava em desenhar. Era o corpo.

Dona Lurdes não sabia quem era, ou quem tinha sido. Sabia apenas que, décadas atrás, em um dia abafado como aquele, um corpo fora encontrado ali. Um homem. O murmúrio na vila foi grande, mas a investigação se perdeu na poeira da burocracia e na indiferença do tempo. A represa engolira o segredo, e a memória da comunidade se fragmentara em boatos.

Pedro havia descoberto algo. Ele não dizia o quê, mas a angústia em seus ombros, a forma como seus dedos trêmulos seguravam a vara de pesca, tudo denunciava. Dona Lurdes via nele o reflexo da sua própria impotência diante do silêncio da água. Ela, que sempre soube que o mistério espreitava, agora temia que a juventude de Pedro se perdesse em suas profundezas.

Um dia, Pedro apareceu com uma pequena caixa de metal enferrujada. Era um pedaço de metal retorcido, com uma ponta afiada. Ele a encontrou ali, preso em um emaranhado de galhos submersos. “Era de um homem, vovó”, disse ele, a voz embargada. “Eu sinto.”

Dona Lurdes pegou a peça fria. O metal parecia pulsar com uma história não contada. O que ele sentia? A vida roubada, a injustiça calada, o nome esquecido?

Naquela tarde, enquanto o sol se despedia em tons de laranja e roxo, Dona Lurdes e Pedro caminharam até a margem. O lago, negro sob a luz moribunda, parecia observar. Pedro lançou a linha com mais força do que o usual. O peso no anzol, no entanto, parecia mais denso.

“Tem alguma coisa aí, vovó”, murmurou Pedro, o olhar fixo na linha tensa. Dona Lurdes sentiu o coração apertar. Algo estava vindo à superfície. Mas o que seria? A verdade? Ou apenas um pedaço do passado, arrastado pela correnteza do esquecimento?

O corpo de Dona Lurdes tremia, não de frio, mas de uma expectativa antiga. Ela sabia que aquela água guardava mais do que um corpo. Guardava vidas transformadas, destinos alterados, a marca indelével de um crime que se tornou parte da paisagem. E agora, Pedro parecia prestes a desvendar mais uma camada desse silêncio. Mas a que custo? A represa era um espelho. E o que ela refletia, às vezes, era o mais assustador daquilo que se tenta esconder.

Pedro puxou a linha. A água agitou-se. Algo pesado se movia lá embaixo. Uma sombra maior, mais definida, subia lentamente. Dona Lurdes fechou os olhos, o pedaço de metal na mão, o cheiro de terra úmida e de mistério no ar. Não era apenas um lago. Era um portal. E ela, e Pedro, estavam prestes a dar um passo em direção ao desconhecido.


Por: João Pedro Silveira

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