Uma boneca antiga que muda de posição quando ninguém está olhando.

Uma boneca antiga que muda de posição quando ninguém está olhando.

A Sombra na Cama de Alice: A Boneca Que Respira

O pó fina de uma existência longa se acumula na velha cômoda da casa dos Silveira, em São Paulo. Em meio a relíquias de um passado quase esquecido, repousa uma boneca de porcelana, de olhos azuis fixos e um sorriso pintado que, para muitos, já era apenas uma lembrança vaga. Mas para dona Marlene, 68 anos, a velha boneca de sua falecida filha Alice, a “Lúcia”, é mais que um objeto. É um enigma que a assombra e fascina, uma presença silenciosa que desafia a lógica e o tempo.

“Era da Alice, desde que era pequenininha”, conta Marlene, a voz embargada, enquanto ajeita um véu de renda sobre a cabeça da boneca. “Ela a amava. Dormia com ela, levava para todo lado. Depois que… depois que a Alice se foi, a boneca ficou ali, no quartinho dela. Eu não tinha coração de tirar.”

O quartinho de Alice, preservado como um santuário, exala o cheiro suave de lavanda e nostalgia. A cama de solteiro, o armário com roupas de infância e, sobre um banquinho, a boneca Lúcia. Foi ali que a jornada surreal de Marlene começou.

“Tudo começou sutil”, confessa Marlene, seus olhos marejados fixando-se na boneca. “Eu arrumava o quarto e a boneca estava virada para a janela. No dia seguinte, estava de frente para a porta. Achei que era descuido meu, sabe? A gente se distrai com a idade.”

Mas os “descuidados” se tornaram frequentes e cada vez mais inexplicáveis. Uma vez, Marlene jurou ter deixado Lúcia sentada na cadeira de balanço. Na manhã seguinte, a encontrou deitada na cama, como se tivesse sido colocada ali com todo o carinho. Outra vez, o pequeno vestido azul que ela usava estava amarrado em seu pescoço, um gesto que fez o sangue de Marlene gelar.

“Teve uma noite que eu acordei com um barulho”, relata ela, a mão cobrindo a boca. “Parecia um arrastar leve, de pano. Eu olhei para o quartinho… e a Lúcia estava no chão, perto da porta. Ela não tinha como ter caído sozinha. Aquele banquinho é firme, e ela estava virada para o outro lado.”

Marlene buscou explicações racionais. Seriam ratos? Correntes de ar? A própria velhice pregando peças em sua mente? Ela chegou a chamar um eletricista para verificar a fiação, temendo algo sobrenatural. Mas nada foi encontrado. A única constante era a presença inabalável da boneca e suas posições mutáveis.

Vizinhos e amigos de Marlene, como Dona Carmem, 72 anos, vizinha há décadas, também notaram a peculiaridade. “A Marlene me contou”, diz Carmem, balançando a cabeça com uma mistura de descrença e espanto. “Eu não fui lá ver, confesso. Mas a Marlene é uma mulher sã, não inventaria uma coisa dessas. E a Alice… coitadinha da Alice. Talvez a boneca seja uma forma de ela ainda estar por perto, sabe? Uma forma de se comunicar.”

A história de Lúcia se espalhou de forma tímida pelo bairro. Alguns dizem que é coisa de menina, que a mãe não aceita a perda. Outros sussurram sobre espíritos infantis, sobre a dor e o amor que transcendem a vida. A casa dos Silveira, antes um ponto de encontro social, tornou-se um local de curiosidade silenciosa.

Um dia, a neta de Marlene, Sofia, 15 anos, decidiu passar uma tarde com a avó. Curiosa, foi até o quarto de Alice. Ao encontrar a boneca em uma posição diferente da que a avó a havia deixado, Sofia não sentiu medo. Sentiu uma estranha serenidade.

“Eu vi a Lúcia de pé, apoiada na escrivaninha, como se estivesse olhando as minhas maquiagens”, conta Sofia, um sorriso travesso no rosto. “No começo, eu pensei na vovó. Mas depois eu pensei… e se não for? E se for a tia Alice? Eu nunca a conheci, mas sempre me falaram que ela era muito alegre. Talvez ela esteja brincando.”

Sofia começou a deixar pequenos bilhetes para a boneca: “Lúcia, você gostou da minha roupa nova?”, “Alice, espero que esteja feliz onde estiver.” Ela nunca encontrou respostas escritas, mas a boneca, a cada manhã, parecia ter uma nova pose, como se estivesse respondendo de sua maneira única.

A história da boneca Lúcia não tem um ponto final definido. É uma narrativa em constante mutação, assim como as posições da própria boneca. É a personificação de uma dor que se recusa a ser esquecida, de um amor que desafia os limites do tangível. E para Marlene, é a esperança silenciosa de que, talvez, sua Alice ainda esteja ali, observando, brincando, cuidando.

Mas se a boneca Lúcia apenas muda de posição por capricho do tempo e da física, ou se há algo mais, uma presença que se manifesta através da porcelana fria e dos olhos azuis vidrados, essa é uma pergunta que paira no ar úmido de São Paulo, ecoando no silêncio do quarto de Alice.

O que os olhos imóveis de Lúcia realmente veem quando ninguém está olhando?


Por: Silas Thorne, o Cronista do Insólito

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