Um túnel escuro que leva a um lugar que não deveria existir.
O Cheiro de Chuva em Asfalto Queimado
O calor de janeiro pesava sobre Osório, esmagando a cidade como um punho de ferro. As ruas pareciam derreter, o asfalto exalando um cheiro acre de borra de pneu e poeira. Para Lídia, cada dia era uma luta contra a apatia que se instalara como uma névoa fina, mas persistente, em sua vida desde que João partira. Ele não partira para longe, não de verdade. Apenas para o quarto dos fundos, trancado a sete chaves, onde o silêncio era seu único companheiro, interrompido apenas por murmúrios incompreensíveis e o ocasional bater de algo no chão.
O túnel ficava nos fundos do terreno baldio atrás do mercadinho do Seu Maneco, um buraco negro engolindo a pouca luz que o sol torturava a encontrar. Ninguém sabia como ele surgira. Um dia, simplesmente estava lá, um rasgo na terra que cheirava a mofo e a algo mais, algo que Lídia não conseguia nomear. Era um convite sussurrado, um segredo guardado pela grama alta e pelas latas de cerveja amassadas.
Seu Pedro, vizinho da frente e a voz mais estridente do bairro, jurava que era obra de um espírito zombeteiro. Dona Lourdes, que vendia quentinha na esquina, dizia que era um portal para o submundo, um lugar de desgraça. Mas para Lídia, o túnel tinha uma gravidade diferente. Havia dias, nos longos e úmidos fins de tarde, em que a curiosidade a puxava com uma força irresistível.
Um sábado, a chuva decidiu cair com a fúria de quem se arrepende de um longo período de seca. As gotas grossas batiam nas telhas de amianto com um som insistente, e o cheiro de terra molhada subia, misturando-se ao aroma do café coado que Lídia preparava mecanicamente. João, em seu silêncio habitual, batucava ritmicamente na porta do quarto. Era um sinal.
Lídia pegou o guarda-chuva velho, o cabo torto e as varetas ameaçando ceder, e saiu para a rua lamacenta. O mercadinho do Seu Maneco estava fechado, as portas de metal baixadas. O terreno baldio, antes um campo de futebol improvisado para a garotada, agora era um mar de lama e folhas encharcadas. O túnel, mais escuro e ameaçador com a pouca luz da tarde chuvosa, parecia respirar.
Hesitou por um momento, o coração batendo descompassado contra as costelas. O que a esperava lá dentro? O medo a roía, mas a necessidade de compreender, de encontrar uma resposta para o vazio que João criara, era maior. Empurrou a lona rasgada que cobria parcialmente a entrada e entrou.
O cheiro era intenso agora, um misto de terra úmida, mofo antigo e algo doce e nauseante, como flores em decomposição. A escuridão era absoluta, um veludo que engolia a visão. Lídia esticou a mão, sentindo a parede fria e úmida, revestida de algo que parecia musgo espesso. Cada passo era acompanhado pelo som de gotas pingando em algum lugar distante, ecoando como batidas lentas em um tambor invisível.
Ela não sabia quanto tempo caminhou. Minutos? Horas? A sensação do tempo se distorcia, tornando-se fluida e maleável. De repente, um leve brilho surgiu à frente. Não era luz, era uma luminescência pálida, suave, que parecia emanar das próprias paredes.
O túnel se abriu em uma câmara, pequena e irregular. O chão não era de terra, mas de um material macio e esverdeado, como um tapete de musgo vivo. No centro, algo se movia. Não era um animal, nem uma planta. Era uma estrutura delicada, feita de filamentos finos e translúcidos que pulsavam com a mesma luminescência suave. Era como uma teia intrincada, mas viva, emitindo um zumbido quase inaudível, uma vibração que ressoava no âmago de Lídia.
E ali, entre os filamentos pulsantes, ela viu. Fragmentos. Pedaços de memórias, de sentimentos, de palavras não ditas. Viu a risada de João no dia em que o carro do vizinho pegou fogo. Sentiu o toque de sua mão no dia em que sua mãe adoeceu. Ouviu, pela primeira vez em meses, o som claro e límpido de sua própria voz cantando uma antiga canção de ninar.
Eram pedaços de sua vida, da vida deles, suspensos naquele lugar impossível. Não era um lugar de desgraça, nem de espíritos zombeteiros. Era um lugar onde as coisas que pareciam perdidas, fragmentadas, não morriam de verdade. Eram guardadas, preservadas.
Uma figura emergiu da penumbra, envolta na mesma luminescência. Era um ser feito de sombras e luz, sem feições definidas, mas que emanava uma calma profunda. Falou, não com a voz, mas com um pensamento que ressoou diretamente na mente de Lídia: “Você veio buscar o que se perdeu no barulho.”
Lídia olhou para a teia pulsante, para os fragmentos de sua existência. Viu um pedaço de João, um riso infantil, um olhar de ternura. E soube que não podia levá-lo. Não podia arrancar aquilo dali. Era como tentar roubar o próprio ar.
Quando Lídia emergiu do túnel, a chuva havia cessado. O sol tentava romper as nuvens, pintando o céu de um laranja desbotado. O cheiro de chuva em asfalto queimado pairava no ar, agora mais ameno. O túnel, ainda escuro, parecia um pouco menos ameaçador.
Ela voltou para casa. A porta do quarto de João ainda estava fechada. Mas o som de batidas havia cessado. O silêncio, antes opressor, parecia agora ter uma nota diferente, menos um vazio e mais uma espera. Lídia sentou-se na cozinha, o cheiro de café fresco preenchendo o ar. Olhou para a janela, para o céu que clareava lentamente. O túnel ainda existia. E em algum lugar, nos fundos de seu terreno, em um lugar que não deveria existir, fragmentos de sua vida pulsavam, vivos. E ela, agora, sabia para onde olhar quando o silêncio se tornasse insuportável.
Por: Beatriz Almeida Vianna

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