A Alma nas Estantes

A Alma nas Estantes

O cheiro de cera antiga e poeira fina, uma fragrância peculiarmente reconfortante para Dona Esmeralda, pairava no ar como um véu translúcido. Ela ajustou os óculos na ponta do nariz, a luz fraca do abajur projetando sombras dançantes sobre as prateleiras repletas. O casarão, outrora vibrante com as visitas do falecido marido, o Sr. Antônio, era agora um santuário silencioso, guardião de sua paixão.

Antônio não era um homem de grandes riquezas, mas sua fortuna residia na colecionador. O que para muitos seria tralha, para ele era história. Cada objeto exposto ali, cuidadosamente arranjado em seu pequeno museu particular no segundo andar, contava uma história que só ele, e agora, Esmeralda, parecia compreender. Havia a coleção de carretéis de linha coloridos, doados por bordadeiras de todo o Brasil que ele encontrava em feiras de artesanato; a caixa de música enferrujada que, surpreendentemente, ainda emitia uma melodia desafinada, mas terna; e, no centro, a vitrine com os anéis de prata, cada um ostentando uma pedra diferente, símbolos de promessas feitas e quebradas, de amores perdidos e reencontrados.

Esmeralda, em seus sessenta e poucos anos, sentia-se cada vez mais como a guardiã desse legado. A vida seguia lá fora, no burburinho da Vila Madalena, onde os jovens corriam em bicicletas e os cafés se enchiam de conversas apressadas. Aqui dentro, o tempo parecia ter ganhado um ritmo próprio, ditado pelo tique-taque de um relógio de pêndulo no corredor e pelo suspiro suave que escapava dos lábios de Esmeralda ao tocar uma antiga carteira de couro desgastado.

“E você, meu querido?”, ela murmurou, dirigindo-se a um pequeno boneco de barro, sem pintura, com um sorriso enigmático. “Quem foi que te trouxe para cá? Que história você carrega?”

Havia um dilema que a atormentava nas últimas semanas, um eco das palavras da advogada: “Dona Esmeralda, o valor sentimental é imensurável, mas a manutenção deste imóvel e da coleção exigirá recursos consideráveis. Talvez fosse o caso de considerar um… desapego.”

Desapego. A palavra soava oca, desalmada. Como desapegar-se das mãos que cuidadosamente poliram cada peça, dos olhos que brilhavam ao encontrar um novo tesouro, do coração que pulsava em cada um daqueles objetos? Ela lembrava-se da vez em que Antônio passou uma tarde inteira tentando consertar a engrenagem da caixa de música, as mãos sujas de graxa, a testa franzida em concentração, e o sorriso triunfante quando a melodia finalmente soou. Era a persistência dele, a dedicação silenciosa que agora viviam nas estantes.

Certa tarde, enquanto limpava a vitrine dos anéis, sentiu uma corrente de ar fria percorrer o cômodo, apesar das janelas fechadas. Um arrepio percorreu sua espinha. De repente, a luz do abajur pareceu intensificar-se, projetando uma figura etérea em frente a um dos espelhos antigos. Não era uma imagem nítida, mas um contorno, uma aura que parecia emanar uma familiaridade reconfortante. A silhueta de um homem, um chapéu levemente inclinado, um sorriso discreto. O Sr. Antônio.

Esmeralda não sentiu medo. Sentiu uma paz profunda, uma confirmação silenciosa. Ele estava ali, cuidando de suas joias, de suas memórias. O espírito do colecionador, entrelaçado à essência de seus pertences, protegendo-os.

Ela voltou a limpar os anéis, o movimento mais leve, mais seguro. A ideia do desapego pareceu ainda mais absurda. Como vender um pedaço de alma? Como mercantilizar um amor que transcendia a matéria?

Naquela noite, antes de se recolher, Esmeralda deixou a porta do museu entreaberta. O brilho fraco da lua entrava pelas frestas, beijando os objetos. Ela se perguntou se o espírito de Antônio apenas habitava o lugar, ou se ele, de alguma forma, continuava a buscar por novas peças, por novas histórias. E se um dia, ela também, ao desapegar-se do corpo, se tornasse parte daquele museu, uma guardiã invisível a sussurrar histórias para os futuros visitantes? O pensamento não a assustava. Na verdade, trazia um fio de esperança, um vislumbre de eternidade num mundo que se esvaía tão rapidamente. A casa continuava em silêncio, mas agora, Esmeralda sabia, não era um silêncio vazio. Era o silêncio de quem zela, de quem ama.


Por: Isabela Fernandes Couto

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *