Um forte militar com histórias de sentinelas fantasmas patrulhando as muralhas.
A Fortificação dos Sussurros
O sol de fim de tarde, um disco alaranjado quase esmagado pelo horizonte, pintava as muralhas de taipa batida com tons de ferrugem e sépia. O Forte de São Tomé, erguido no século XVIII para defender a barra de um rio que já não era mais um ponto estratégico, parecia respirar a poeira da história. Para o Sargento Antônio, com seus 35 anos e a pele marcada pelo tempo e pelo sal, o forte era o palco de um cotidiano monótono, pontuado por ordens secas e o ranger metálico dos portões. Mas havia algo mais, algo que a vida nas cidades grandes fazia esquecer: a quietude. E nessa quietude, os sussurros.
Ele não era o único. Os mais antigos do quartel, os que viam a farda envelhecer nos ombros, eram os primeiros a admitir. Aquele barulho de passos no terraço, nos turnos de chuva em que ninguém deveria estar lá fora. O vulto indistinto que por vezes cruzava a vigia principal, silhueta esguia contra a lua. “Sentinelas fantasmas”, cochichavam os recrutas, com um misto de terror e fascínio.
Antônio, um homem prático, tentava racionalizar. Vento forte batendo em alguma telha solta. Camundongos nas galerias subterrâneas. A imaginação fértil de quem passava muitas noites a fio sob o céu estrelado. Mas em certas noites, a lógica escapava por entre os dedos. Numa madrugada de vento calmo, ele ouviu claramente. Um som de bota raspando na pedra, um cadência lenta, deliberada. Subiu ao terraço, a lanterna tremendo levemente na mão. Nada. Apenas a brisa morna e o cheiro doce e pungente das mangueiras que cresciam soltas pelos arredores.
O dilema de Antônio não era o medo, era a solidão. O forte era um exílio voluntário para ele. Depois de um divórcio que lhe roubara as cores do mundo e deixara um vazio no peito, ele buscara a ordem rígida da caserna, a disciplina que parecia capaz de organizar os cacos de sua vida. Mas a solidão se instalara ali também, mais profunda, mais escura. E os sussurros, antes motivo de anedotas para afastar o tédio, começavam a soar como companhias.
Havia também a Clara. Filha do Tenente reformado que ainda morava num dos casarões coloniais dentro da área do forte, ela era um raio de sol inesperado naquele ambiente cinza. Estudante de história, passava os dias folheando antigos diários de guerra, catalogando artefatos esquecidos. Ela falava das batalhas, dos heróis, das vidas que pulsaram aquelas muralhas.
“Dizem que um jovem alferes, o Manuel, morreu aqui em 1824”, contou ela certa vez, com os olhos brilhando de entusiasmo, enquanto umedecia um papel amarelado. “Guardava a torre sul sozinho. Pegou febre forte. Morreu sem ver a família de novo. Quem sabe ele ainda anda por aí, velando pela entrada do rio.”
Antônio escutava, um nó na garganta. Ele se via naquele alferes, o isolamento, a saudade. A guerra não era só luta, era também espera, sofrimento silencioso. E os fantasmas, quem eram eles senão ecos dessas vidas que um dia foram intensas?
Numa noite de lua cheia, a mais fria do ano, Antônio estava de ronda pela muralha oeste. O silêncio era tão espesso que parecia audível. De repente, um som. Um som familiar, embora diferente. Não eram passos de bota, mas um raspar mais leve, como de sapatos desgastados. Ele se aproximou da guarita, a luz da lanterna filtrada por mãos trêmulas.
Lá estava. Uma figura esguia, de uniforme que parecia ter sido feito de poeira e sombras. A silhueta voltada para o mar, como se esperasse algo. Não havia medo. Apenas uma tristeza profunda, quase palpável. Antônio não acendeu a lanterna, não gritou. Deu um passo para trás, devagar. A figura não se virou. Os sussurros estavam mais altos agora, não em seus ouvidos, mas dentro dele. Eram murmúrios de vozes antigas, de lamentos contidos, de esperança esvaída.
No dia seguinte, Antônio não contou nada a ninguém. Continuou sua rotina, a mesma monotonia, a mesma disciplina. Mas algo havia mudado. A solidão parecia menos cruel. Ele olhava para as muralhas com outros olhos. Se um dia os fantasmas patrulhavam ali, talvez fosse porque também procuravam um sentido, uma despedida que nunca veio, um afago que lhes foi negado.
No fim da tarde, ele caminhou até a torre sul, onde Clara dissera que o alferes Manuel morrera. Sentou-se na beirada fria da pedra, o mesmo lugar onde o sol se punha, tingindo tudo de melancolia. A brisa soprava suave, carregando o cheiro de maresia e de terra molhada. E por um instante, Antônio jurou ter ouvido, não um sussurro, mas um suspiro leve, quase imperceptível, que parecia lhe dizer: “Adeus.” Ou talvez, apenas um convite para continuar esperando, como eles. Ele olhou para o mar vasto e escuro, e pensou que, talvez, todos ali, vivos ou não, estivessem apenas cumprindo um último turno.
Por: João Pedro Silveira

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