O Sussurro da Roda Gigante

O Sussurro da Roda Gigante

O cheiro adocicado de algodão doce misturava-se ao salgado do pastel frito e ao vapor úmido que subia do esgoto a céu aberto, um coquetel olfativo emblemático do Parque Paraíso, em Campinas. Era um lugar de risadas altas e gritos agudos, de luzes piscantes e música estridente, um refúgio barato para famílias operárias e casais em busca de um afago no fim de semana. Mas para Dona Lurdes, 62 anos, o Paraíso tinha um gosto amargo, tingido pela saudade do filho, Zé Carlos.

Zé Carlos tinha sido o orgulho da família. Trabalhador de carteira assinada, suor escorrendo pela testa, ele sonhava com um futuro mais digno, longe das casas humildes do Jardim Itatinga. E o Parque Paraíso era seu pão. Há dez anos, ele era o homem por trás do motor rugindo da Roda Gigante, o gigante metálico que pintava o céu de luzes à noite, um farol de esperança em meio à monotonia da vida. Um acidente de trabalho, um descuido na manutenção de uma polia, e Zé Carlos se foi, deixando para trás uma mãe enlutada e o eco de sua risada boa.

Dona Lurdes, agora empregada da limpeza no mesmo parque, fazia questão de passar a Roda Gigante todos os dias, seu coração apertando a cada volta. Notava as pequenas coisas, os “pequenos” ajustes que ela mesma sabia que Zé Carlos fazia, com um jeito peculiar de dar umas batidinhas na estrutura metálica, como se estivesse a conversar com ela. E ultimamente, um barulho específico, um *clank* metálico que se repetia em intervalos irregulares, vinha a incomodá-la. Era o mesmo som que ela associava à preocupação de Zé Carlos quando algo não estava perfeito.

Os jovens que hoje trabalhavam na Roda Gigante não davam a devida atenção. “É o vento, Dona Lurdes”, diziam. “O tempo na estrutura antiga.” Mas Dona Lurdes sabia que não era o vento. Era algo mais, uma insistência, um lamento familiar.

Certa tarde, durante a limpeza da base da Roda Gigante, Dona Lurdes ouviu. Mais nítido do que nunca. O *clank*. Ela se aproximou, seus olhos cansados percorrendo a estrutura de ferro envelhecido. E então, em meio ao murmúrio das conversas dos visitantes e ao som das atrações, ela sentiu. Uma corrente de ar fria, antinatural, mesmo no calor escaldante de Campinas. E um sussurro, baixo, quase inaudível, que parecia vir de dentro do metal: “Atenção, mãe. Atenção.”

Ela congelou. Aquele era o jeito de Zé Carlos, sua preocupação maternal transfigurada em aviso. Tremendo, ela procurou por algo, qualquer coisa fora do lugar. E encontrou. Uma solda antiga, quase imperceptível, com uma rachadura que parecia ter se alargado. Uma falha que, se não corrigida, poderia, no futuro, causar um desastre.

Naquela noite, Dona Lurdes não dormiu. A imagem da rachadura, o sussurro de seu filho ecoando em seus ouvidos. Ela sabia que não podia ignorar. No dia seguinte, com a coragem que a maternidade lhe conferia, ela abordou o gerente, um homem corpulento e impaciente, mais preocupado com a contabilidade do que com os fantasmas que poderiam assombrar seu parque.

Ela descreveu o som, o frio, o sussurro. Falou do filho, do acidente. Ele a escutou com um ar de desdém, mas a insistência nos olhos de Dona Lurdes, a verdade crua em sua voz embargada, o fez ceder. Mandou um mecânico dar uma olhada.

O mecânico, um rapaz chamado Tiago, cético como os outros, mas com um quê de curiosidade, encontrou a rachadura. Ficou pálido. Era perigoso. Chamou o supervisor. A Roda Gigante foi parada para manutenção de emergência. O alvoroço foi grande entre os visitantes, mas Dona Lurdes sentiu uma paz silenciosa.

Enquanto a Roda Gigante era consertada, Dona Lurdes continuou seu trabalho. Mas agora, ao passar pela estrutura imponente, ela não sentia mais apenas a dor da saudade. Sentia uma gratidão imensa, um toque suave no ar. E, vez ou outra, quando o vento soprava de um jeito particular, ela jurava ouvir, um sussurro quase carinhoso, misturado ao ranger do metal: “Fiz o meu dever, mãe. Agora, a senhora faz o seu.”

O Parque Paraíso continuou com seu burburinho de alegria e medo. As pessoas se divertiam, inconscientes do que poderia ter acontecido. Dona Lurdes, por sua vez, continuava a varrer o chão sob a Roda Gigante, seus olhos agora encontrando a estrutura com um novo significado. E ela se perguntava, a cada dia, quantas outras almas, invisíveis e silenciosas, trabalhavam para a segurança e a diversão alheia, sussurrando avisos em meio ao caos familiar do cotidiano brasileiro. E quem estaria lá para ouvi-las?


Por: Catarina de Assis Mendonça

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