Um navio afundado que, em noites de neblina, tem aparições de sua tripulação.

Um navio afundado que, em noites de neblina, tem aparições de sua tripulação.

O Grito Silencioso da Vigia

A neblina chegava sem pedir licença, como um véu pesado e úmido descendo sobre a Enseada de Botafogo. As luzes da cidade se tornavam borrões amarelados, e o som das buzinas dos barcos, abafado, parecia ecoar de outro tempo. Foi numa dessas noites, com o ar salgado grudando na pele e o cheiro de maresia misturado ao mofo da maresia que Dona Clara, sentada à janela de seu apartamento com vista para a baía, sentiu um arrepio que não era do frio.

Há anos ela morava ali, vendo a vida passar – casamentos, nascimentos, despedidas. Via os navios grandes e pequenos cruzando a água, mas ultimamente, em noites de névoa densa, algo diferente acontecia. Algo que ela hesitava em confessar, mesmo para si mesma.

Era o “Estrela do Sul”. Um cargueiro antigo, que anos atrás, numa tempestade traiçoeira, afundara ali perto. O rumor era que a tripulação toda pereceu. Ninguém se lembrava dos nomes, apenas do desastre, da tragédia que tingiu de cinza as águas que agora brilhavam sob o luar filtrado pela bruma.

Dona Clara, viúva há uma década, vivia uma rotina tranquila, pontuada pelas visitas da neta, Sofia, uma estudante de jornalismo com olhos curiosos e uma sede insaciável por histórias. Sofia, cética por natureza, ouvira os murmúrios sobre o navio fantasma, mas os atribuía à imaginação fértil dos moradores antigos e à melancolia da cidade.

Naquela noite, no entanto, a neblina era particularmente espessa. Dona Clara, com um xale de lã sobre os ombros, observava o contorno difuso dos prédios e, no meio da baía, algo se destacava. Uma forma sombria, fantasmagórica, que parecia emergir das profundezas. Ela apertou os olhos. Não era um barco moderno. Era mais baixo, mais comprido, com um mastro que desaparecia no breu. E, mais perturbador, ela jurava ver figuras esguias, movendo-se em seu convés.

“Sofia”, ela chamou, a voz embargada. “Venha ver isso.”

Sofia, que lia um livro na poltrona, suspirou, mas atendeu ao chamado. Quando chegou à janela, seus olhos se arregalaram.

“Vó… o que é aquilo?”

A visão era inegável. A silhueta do navio afundado estava lá, banhada por uma luz pálida e fantasmagórica que emanava da própria névoa. E as figuras… eram homens, vestidos com roupas que pareciam de outra época. Movimentavam-se com uma lentidão cadenciada, como se estivessem cumprindo um dever eterno. Um deles parecia estar em pé no leme, com a mão estendida, como se tentasse guiar a embarcação para um porto invisível. Outro, perto da proa, olhava para a cidade, um olhar fixo e melancólico.

Dona Clara sentiu as lágrimas rolarem. Não de medo, mas de uma tristeza antiga, profunda. “São eles, Sofia. A tripulação do Estrela do Sul.”

Sofia estava em choque. O ceticismo se desintegrava diante daquela aparição surreal. “Mas… como? É impossível.”

“O mar guarda seus segredos, minha filha”, disse Dona Clara, a voz embargada. “E às vezes, em noites assim, ele nos empresta um pedaço do passado.”

Enquanto observavam, uma figura solitária no convés do navio fantasma virou-se em direção à janela. Por um breve momento, seus olhos, que pareciam escuros e profundos, encontraram os de Dona Clara. Um reconhecimento tácito, uma saudação silenciosa que cruzou a distância e o tempo.

Dona Clara sentiu um aperto no peito. Não era um espectador que ela via, mas alguém que se conectava a ela de alguma forma inescrutável. Havia uma história ali, uma dor que parecia se repetir em noites de névoa.

A névoa começou a se dissipar gradualmente, trazendo de volta os contornos nítidos dos prédios. A silhueta do navio afundado esmaeceu, como um sonho desfeito ao amanhecer. As figuras desapareceram, deixando apenas a vastidão escura da baía e o som ritmado das ondas.

Sofia, ainda pálida, agarrou o braço da avó. “Vó, o que foi isso?”

Dona Clara suspirou, um suspiro que parecia carregar o peso dos anos. “Não sei, Sofia. Talvez seja o mar lembrando do que perdeu. Ou talvez… talvez eles estejam procurando algo. Ou alguém.”

Ela olhou para a baía agora limpa, para o lugar onde o navio fantasmagórico estivera. Uma pergunta pairava no ar, mais densa que a névoa que acabara de se dispersar: o que eles procuravam, e será que um dia encontrariam? E, num silêncio carregado de mistério, Dona Clara se perguntou se, naquela visão, ela não teria sido, de alguma forma, um elo para aquilo que o mar mantinha aprisionado em sua memória salgada. A verdade, como a neblina, parecia sempre se esconder um pouco mais, deixando apenas o eco de um grito silencioso e a promessa de um retorno em noites de véu úmido.


Por: Beatriz Almeida Vianna

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