O Sussurro nas Paredes de Sete Léguas

O Sussurro nas Paredes de Sete Léguas

O portão rangeu, um lamento metálico que parecia ecoar a própria idade da casa vitoriana. Ana sentiu um arrepio, não de medo, mas de uma estranha familiaridade. O casal, Ana e Pedro, com os gêmeos, Leo e Lia, de oito anos, atravessavam o limiar de Sete Léguas. O cheiro de mofo, madeira antiga e uma fragrância floral desbotada os envolveu. A casa era um sonho antigo de Ana, um refúgio do asfalto quente de São Paulo, uma promessa de infância com cheiro de bolo de fubá e tardes de sol na varanda.

A casa, em si, era um personagem. As paredes cor de creme, com rendas de gesso nas cornijas, guardavam um silêncio profundo. Os pisos de madeira maciça estalavam sob os pés, contando histórias a cada passo. A sala de estar, com sua lareira imponente e os móveis pesados que pareciam congelados no tempo, tinha um ar de dignidade melancólica. Pedro, sempre pragmático, já planejava reformas, mas Ana se deixava levar pela aura do lugar.

Os primeiros dias foram de euforia. Caixas desempacotadas, cheiro de tinta fresca nas paredes recém-pintadas, a risada das crianças ecoando pelos corredores. Mas logo, o “estranho” começou a se manifestar. Objetos que mudavam de lugar. A xícara de chá de Ana que, minutos antes sobre a mesa da cozinha, aparecia na estante da sala. As ferramentas de Pedro que sumiam do seu canteiro improvisado no quintal e reapareciam no sótão, entre teias de aranha e caixas empoeiradas.

“É o vento, mãe”, dizia Leo, com a lógica infantil, tentando acalmar a inquietação crescente de Ana. Lia, mais introspectiva, apenas observava, os olhos grandes e escuros fixos em algum ponto além do que seus pais podiam ver.

Foi Lia quem a viu primeiro. A “senhora de branco”. Uma figura etérea, esguia, com cabelos longos e escuros que pareciam dançar mesmo na ausência de brisa. Ela a viu no canto do quarto, observando-a com uma serenidade que não assustava, mas provocava uma curiosidade infantil.

“Tem uma moça no meu quarto, mãe”, disse Lia, com a voz calma, durante o jantar.

Pedro revirou os olhos, um sorriso irônico no rosto. “Sua imaginação, filha. Está adorando a casa nova.”

Mas Ana sentiu um frio na espinha. Sabia que Lia não inventava histórias. E Leo também começou a notar. A bola de futebol que ele tinha certeza ter deixado no jardim apareceu na soleira da porta dos fundos. A porta do sótão, que Pedro jurava ter trancado, aparecia entreaberta pela manhã.

Certa tarde, enquanto Ana regava as rosas que desafiavam a sombra das árvores centenárias do jardim, ela ouviu um sussurro. Um murmúrio indistinto, como o roçar de seda. Olhou ao redor. Nada. Apenas o zumbido das abelhas e o canto distante de um sabiá.

A senhora de branco começou a ser vista por Leo também. Ele a descrevia como “triste” e “bonita”, mas jamais assustadora. Dizia que ela parecia querer falar, mas suas palavras se perdiam antes de chegar até eles.

Pedro, por mais que tentasse racionalizar, não conseguia ignorar a persistência dos eventos. As ferramentas sumindo, as portas abrindo. A inquietação na casa era palpável, uma eletricidade sutil que pairava no ar.

Ana, com sua natureza empática, começou a sentir uma presença. Não era hostil, mas carregada de uma saudade antiga. Passava horas na biblioteca empoeirada, folheando livros sobre a história da região, sobre as famílias que habitaram Sete Léguas. Descobriu fragmentos de uma história: uma jovem que se perdeu na casa, um amor não correspondido, uma partida abrupta.

Uma noite, Ana acordou com um choro baixo. Era Lia. Na penumbra do quarto, Ana viu a silhueta da senhora de branco, próxima à cama da filha. Em vez de gritar, Ana apenas sussurrou: “O que você quer?”.

A figura esguia se virou lentamente. Seus olhos, mesmo sem forma definida, pareciam fixar-se em Ana. E então, com um movimento quase imperceptível, ela estendeu uma mão translúcida em direção à janela. Lá fora, sob o céu estrelado, uma roseira antiga, que Ana pensara ter morrido, desabrochava em silêncio, exibindo uma única rosa vermelha, vibrante e intensa.

Ao amanhecer, a rosa estava murcha. A senhora de branco não era vista há dias. Os objetos pararam de se mover. A casa, outrora prenhe de sussurros e sombras, parecia ter retomado seu silêncio. Mas Ana sabia que algo havia mudado. A antiga moradora, talvez em busca de paz, ou de um último ato de comunicação, havia deixado sua mensagem. Uma mensagem de amor, de perda, de uma vida que, de alguma forma, ainda pulsava nas paredes de Sete Léguas.

Pedro, observando Ana contemplar a roseira, segurou sua mão. Não havia mais necessidade de palavras. A casa vitoriana, com seus segredos e seus fantasmas, tornara-se, para eles, mais do que um lar. Tornara-se um elo com o passado, um lembrete de que as histórias, e as pessoas que as viveram, jamais desaparecem completamente. E enquanto o sol nascia sobre Sete Léguas, lançando longas sombras sobre o gramado, Ana se perguntava se a senhora de branco havia, finalmente, encontrado seu descanso, ou se apenas esperava o próximo capítulo.


Por: Marina Rocha Antunes

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