Um antigo hospital psiquiátrico com relatos de sussurros fantasmagóricos e vultos nos corredores.
TERRA TREMEU EM SILÊNCIO
O portão de ferro forjado, oxidado em tons de ferrugem e verde musgo, rangeu em um gemido arrastado, um convite sinistro para o que jazia além. A grama alta abraçava os pés da velha Hilux cinza do Ricardo, cobrindo o asfalto rachado que levava ao prédio imponente e esquecido. A Plácido Guedes, um nome que para os poucos moradores de Ouro Velho era sinônimo de medo e histórias sussurradas à luz de lampiões. Um antigo hospital psiquiátrico.
Ricardo desceu, o ar pesado de umidade e poeira invadindo seus pulmões. O sol da tarde batia em fachadas descascadas, revelando tijolos antigos e janelas quebradas que pareciam olhos vazios. Ele apertou a alça da mochila, a câmera fotográfica pendurada no pescoço, um peso reconfortante. Era sua terceira tentativa de documentar a Plácido Guedes. A primeira vez, um temporal o forçou a recuar. A segunda, a receio o paralisou na entrada. Hoje, o receio ainda estava lá, mas a urgência em desvendar as histórias que assombravam sua imaginação era maior.
Um cheiro adocicado e mofado pairava no ar. Ao abrir a porta principal, o eco de seus passos ressoou pelo vasto saguão. O chão de ladrilhos desgastados revelava padrões desbotados. Um balcão de madeira maciça, agora lascado e coberto de teias de aranha, parecia ter sido abandonado às pressas. Quadros de autoridades esquecidas jaziam tortos nas paredes.
“Tem alguém aí?”, a voz de Ricardo saiu embargada, mais um sussurro do que uma pergunta.
Um roçar leve, um movimento sutil na periferia de sua visão. Ele se virou bruscamente, a câmera pronta. Nada. Apenas as sombras dançando com a pouca luz que se infiltrava pelas janelas. Mas ele sentiu. Uma presença. Um frio que nada tinha a ver com a temperatura ambiente.
Acompanhado pela lanterna de seu celular, ele adentrou um corredor longo e estreito. Portas de quartos se alinhavam de ambos os lados, algumas entreabertas, revelando camas de ferro enferrujadas e colchões rasgados. Em uma delas, um urso de pelúcia desbotado, com um olho a menos, parecia chorar em silêncio. Ricardo tirou uma foto, sentindo um aperto no peito.
“Histórias de sussurros”, murmurou para si mesmo. Lembrou-se das conversas no boteco do Seu Geraldo, onde os mais velhos juravam ouvir vozes lamentando nas noites de lua cheia. Vultos indistintos deslizando pelos corredores. Ele, um fotógrafo buscando a essência da melancolia e do esquecimento, sentia que havia encontrado seu palco.
Ao chegar a uma sala maior, com paredes azuis desbotadas, ele notou algo peculiar. Uma cadeira de balanço, parada no centro, parecia dançar suavemente, como se alguém a tivesse deixado ali há instantes. O ar ficou mais denso, o cheiro de mofo mais pungente. Ele ergueu a câmera, a mão tremendo ligeiramente. O clique do obturador soou alto demais. A cadeira parou.
Ricardo sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Não era medo, era algo mais profundo. Uma sensação de estar sendo observado, julgado. Ele era um intruso, um espectador curioso em um lugar onde a dor e a solidão haviam deixado marcas indeléveis.
Continuou sua exploração, cada cômodo contando uma história silenciosa. Em uma sala que parecia ter sido a sala de atividades, livros rasgados e desenhos infantis colados nas paredes criavam uma atmosfera perturbadora. Um quadro a óleo desbotado, pendurado torto, retratava um grupo de pessoas com rostos serenos, mas seus olhos pareciam carregar um vazio imenso.
De repente, um som agudo e distante ecoou. Parecia um choro. Ricardo congelou, o coração disparado. Era real? Ou sua mente, influenciada pelas histórias, estava pregando peças? Ele tentou identificar a origem, mas o som se dissipou tão rápido quanto apareceu.
Ele se aproximou de uma janela, olhando para o exterior. O sol já se punha, tingindo o céu de laranja e roxo. A vegetação selvagem parecia engolir o prédio. Ele se perguntou quem foram as pessoas que passaram por ali, quais eram seus medos, suas esperanças, suas perdas.
Foi então que ele a viu. Uma figura tênue, na ponta do corredor por onde viera. Uma forma indistinta, esbranquiçada, que parecia flutuar em vez de andar. Por um instante, o tempo parou. Ricardo não moveu um músculo, apenas observou, a câmera abaixada. O vulto não tinha feições, era apenas uma silhueta etérea. E então, tão misteriosamente quanto surgiu, desvaneceu-se na escuridão.
Ricardo respirou fundo, sentindo o suor frio escorrer por sua testa. Ele não tirou foto. Não houve tempo. Ou talvez, em algum nível, ele soubesse que nenhuma lente seria capaz de capturar aquilo. Era algo para ser sentido, vivenciado.
Ao sair da Plácido Guedes, a noite já havia engolido Ouro Velho. As luzes fracas das casas pareciam distantes e acolhedoras. Ele ligou a Hilux, o motor roncando em contraste com o silêncio opressor que deixara para trás. Ao olhar pelo retrovisor, o prédio escuro e imponente parecia observá-lo, um guardião silencioso de segredos inomináveis.
Ricardo não tinha as fotos que esperava, as imagens que provariam a existência dos sussurros e dos vultos. Mas ele tinha algo mais. Uma lembrança vívida, uma sensação persistente. A Plácido Guedes não era apenas um prédio abandonado. Era um repositório de almas, um eco de vidas interrompidas, um convite a olhar para dentro de si mesmo e confrontar os próprios fantasmas, aqueles que habitam não os corredores de um hospital psiquiátrico, mas os recônditos mais profundos de nossa própria humanidade. E, enquanto dirigia pela estrada escura, ele se perguntou se os sussurros que ouvira eram realmente dos que ali viveram, ou apenas a própria Terra, trêmula em silêncio, contando suas histórias esquecidas.
Por: Isabela Fernandes Couto

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