Cemitério de carros: em são carlos, um ferro-velho abandonado se torna um local de estranhos fenômenos, onde carros e seus antigos donos parecem ter sido sugados para um outro lugar.
CEMITÉRIO DE SUSPIROS
O ar em São Carlos tinha um cheiro particular naquela época. Uma mistura acre de terra seca sob o sol inclemente e a poeira fina que grudava na pele, misturada, nas proximidades do antigo ferro-velho, com um odor inconfundível de óleo velho, borracha ressecada e metal em decomposição. Era um cheiro que Maria Lúcia conhecia desde menina, um prenúncio de aventura ou de desgraça, dependendo do humor dos garotos que a desafiavam a se aproximar da cerca de arame farpado.
O cemitério de carros, como o chamavam, não era um lugar para se visitar. Era um esquecimento. Um amontoado monumental de carcaças enferrujadas, esqueletos de fuscas, corcelas com os ossos expostos, kombis que um dia transportaram famílias para a praia e agora eram apenas invólucros vazios. A vegetação teimosa, capim seco e alguma trepadeira esquelética, tentava devorar o que o tempo já havia engolido.
Mas algo mudou. Os boatos começaram sussurrando nas vielas, em conversas de boteco onde a cerveja gelada ajudava a dar forma a medos antigos. Primeiro, foram os barulhos. Sons indistintos, ecos distantes de motores que, por mais que o bom senso negasse, pareciam ligar e desligar no meio da noite. Depois, luzes. Flashes fracos, tremeluzentes, como se faróis esquecidos tentassem enxergar o nada.
Seu Ademir, um homem de poucas palavras e muita dor no peito, foi um dos primeiros a sentir. Ele era um homem que vivia de consertos, um artesão de peças que já não existiam mais. O Fusca azul-celeste, aquele que um dia sua esposa, Dona Clara, amava passear, estava ali, empilhado, uma sombra do que fora. Ele costumava passar em frente ao ferro-velho todos os dias, no caminho para sua pequena oficina.
Uma noite, o som. Um ronco familiar, rouco, mas inconfundível. Aquele motor boxer, cheio de personalidade. Seu Ademir parou, o coração martelando contra as costelas. Era o ronco do Fusca. Ele se aproximou da cerca, a lanterna trêmula na mão. As luzes fracas pulsavam em meio às carcaças, mas o carro dele, aquele azul-celeste, parecia… não estar ali. O espaço onde ele deveria estar estava vazio. E um eco, um sussurro que parecia vir de dentro do ar rarefeito, pronunciou o nome de Clara.
Outros começaram a falar. A Dona Lurdes, que perdeu o Chevette bege no qual ia para a missa todos os domingos. Ela jurou ter ouvido o som da buzina, aquele toque tímido e hesitante, ecoando da direção do ferro-velho. O jovem Matheus, que perdeu o primeiro carro, um Gol quadrado, em um acidente trágico na estrada de terra batida que levava para o sítio. Ele disse que sentiu uma força puxá-lo em direção ao amontoado de metal, como se o carro o chamasse.
A cidade se dividiu. Muitos riam, chamando tudo de loucura, invenção de gente entediada ou de gente que estava começando a perder os sentidos. Mas para aqueles que tinham uma história com os veículos ali esquecidos, o medo se misturava a uma estranha esperança. Uma esperança desesperada de que algo – ou alguém – estivesse oferecendo uma forma de reencontro, mesmo que efêmero e assustador.
Maria Lúcia, agora adulta, mãe de dois filhos, voltou a São Carlos para o funeral de seu pai. O velho Seu Agenor. O seu primeiro carro, um Opala SS vermelho, um dia fora o orgulho dele. Agora, repousava, com os pneus vazios e a pintura descascada, em algum lugar naquele labirinto de ferrugem.
Ela sentiu o chamado. Não um som, mas uma presença. Uma quietude que parecia vibrar com a memória. Em uma tarde chuvosa, com o céu cinza e pesado, ela se viu caminhando em direção ao cemitério de carros, a chave do Opala do pai no bolso, pesando como uma promessa não cumprida.
A cerca ainda estava lá, embora mais enferrujada e incompleta. Ao cruzar para dentro, o cheiro a atingiu com força. Mas agora, por baixo da decomposição, havia algo mais. Um calor sutil, uma energia que parecia emanar das carcaças.
Ela andou entre os carros, cada um um túmulo de metal. E então, ela viu. Não o Opala vermelho. Não exatamente. O que estava ali era uma silhueta familiar, mas distorcida, como se vista através de um vidro embaçado por lágrimas. Era o Opala, sim, mas com um brilho estranho, quase translúcido. E dentro dele, por um instante fugaz, ela pensou ter visto um reflexo. Um reflexo de um homem sorrindo, com o mesmo jeito que seu pai sorria ao volante.
Um rangido metálico a sobressaltou. O som de um motor ligando, baixo, hesitante, veio de algum lugar profundo no cemitério. Uma luz fraca, como a de um farol distante, piscou e se apagou. Ela sentiu um arrepio, não de medo, mas de uma profunda e melancólica saudade.
Maria Lúcia deu um passo para trás, a chave fria em sua mão. O que era aquele lugar? Um portal? Um eco residual da vida que um dia pulsou dentro daquelas máquinas? Ou seria apenas a mente humana, tentando encontrar conforto na própria dor, projetando seus desejos mais profundos no abandono?
Ela olhou uma última vez para a silhueta do Opala, que agora parecia apenas mais uma carcaça sob a chuva. O cheiro de ferrugem e de memória pairava no ar. Ela sabia que não voltaria mais, mas a pergunta ficaria. O que era que aqueles carros, e seus antigos donos, buscavam naquele outro lugar, sugados pelo silêncio de São Carlos? E, mais perturbador ainda, seriam eles os únicos chamados para o além?
Por: Beatriz Almeida Vianna

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