Névoa de piracicaba: uma névoa densa e fria cobre a cidade em momentos específicos, e quem se perde nela nunca mais é visto, apenas ecos de gritos.
NEBLINA DE ESPERANÇA
O cheiro úmido de terra molhada, misturado ao doce amargo das goiabas em pé de quintal, era a senha. Quando a bruma descia do rio, não era só o frio que apertava a garganta; era a lembrança. A neblina de Piracicaba, essa cobertura fantasmagórica que engolia a cidade em dias pontuais, tinha uma fama perversa. Diziam que quem se perdia nela, se perdia de vez. Não voltava. Restavam apenas os murmúrios, os gritos que a névoa, em sua crueldade sutil, espalhava como estilhaços de uma memória coletiva.
Dona Alzira, com os seus setenta e poucos anos, sentia a mudança no ar antes mesmo que as nuvens cinzentas descessem a serra. Um arrepio que não era só do vento, mas da pressa com que seu coração começava a bater descompassado. O neto, Pedrinho, cinco anos recém-completados, era a luz que dissipava qualquer escuridão em sua vida. Mas a neblina… a neblina trazia de volta a sombra de Clara.
Clara, a filha. Levada pela mesma névoa, quinze anos atrás. Saíra para comprar pão na padaria da esquina, a poucas quadras. Nunca chegou. As buscas foram infrutíferas. As autoridades deram de ombros. Piracicaba, com seus encantos e seus mistérios, guardava os seus segredos. E a neblina era o seu véu, imponente e implacável.
Naquele dia, o sol lutava timidamente contra a bruma que avançava. Os carros reduziam a velocidade, os faróis transformando-se em halos difusos. As vozes pareciam abafadas, cada passo sobre o asfalto molhado ecoando de forma estranha. Dona Alzira observava da janela da cozinha. Pedrinho brincava no chão da sala, empilhando peças de um quebra-cabeça torto. A sua presença era a razão para Dona Alzira enfrentar o medo.
“Vovó, tá escuro lá fora”, disse Pedrinho, levantando a cabeça pequena.
“É só a névoa, meu amor. Logo passa”, respondeu Dona Alzira, a voz firme, mas com uma pontada de receio.
O dilema era um nó constante em sua garganta. Por um lado, o instinto protetor a impelia a manter Pedrinho trancado em casa, longe dos perigos que a cidade parecia vomitar em certos momentos. Por outro, ela sabia que não podia criar um filho aprisionado pelo medo. Clara havia sido uma menina alegre, curiosa, e o que a levou não foi a escuridão, mas talvez a ânsia por mais, por descobrir o que havia além do portão.
O cheiro de café fresco invadiu a cozinha. O aroma familiar, um contraponto à frieza que começava a penetrar as paredes. Dona Alzira pegou o celular. Uma foto de Clara sorrindo, o cabelo preto ondulado caindo sobre os ombros, era o seu papel de parede. Aquele sorriso, tão parecido com o de Pedrinho.
De repente, um som distante. Um grito. Um grito agudo, cortante, que parecia se fragmentar na densidade da névoa. O coração de Dona Alzira disparou. Pedrinho parou de brincar, a expressão atenta.
“Vovó, que barulho foi esse?”, perguntou, com os olhos arregalados.
Dona Alzira se aproximou da janela. A névoa envolvia a rua, transformando as casas vizinhas em vultos indistintos. O grito não se repetiu, mas o eco permaneceu, pairando no ar como um fantasma invisível.
“Nada, Pedrinho. Deve ter sido algum cachorro latindo longe”, mentiu, a voz embargada.
Ela sabia. Aqueles ecos. Eram o legado da neblina. Sussurros de vidas interrompidas, de histórias que nunca seriam contadas. E o medo de que um dia, o eco viesse de perto demais. De que a névoa, com sua apetite silencioso, levasse a última luz que lhe restava.
Pedrinho se levantou e caminhou até a janela. Seus dedinhos tocaram o vidro frio.
“Vovó, olha! Tem uma coisa brilhando lá”, disse ele, apontando para a névoa.
Dona Alzira seguiu o seu olhar. No meio da bruma densa, algo reluzia. Um brilho azulado, fraco, quase imperceptível, que parecia flutuar. Não era a luz dos postes, nem de nenhum carro. Era algo diferente.
“O que é isso, vovó?”, insistiu Pedrinho, a curiosidade superando o medo.
Dona Alzira apertou as mãos. Uma parte dela gritava para puxar o neto para longe, para trancar todas as portas e janelas. Outra parte, a parte que herdara de Clara, a sede de desvendar, a teimosia em não ceder ao desconhecido, sentia um puxão irresistível. A neblina trazia a morte, mas talvez trouxesse algo mais. Uma mensagem? Uma pista? Ou apenas um convite para o abismo?
O brilho azulado oscilava, como uma chama hesitante. Era uma promessa de algo, ou um aviso final. A névoa de Piracicaba, mais densa do que nunca, envolvia tudo, deixando apenas a incerteza e o eco persistente de um grito que talvez nunca tivesse tido fim. Dona Alzira olhou para Pedrinho, os olhos dele fixos no brilho misterioso. E então, sentiu o arrepio familiar, mais forte do que nunca. A decisão pairava no ar, tão densa quanto a bruma lá fora.
Por: João Pedro Silveira

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