Canto das pedras: em lavras, uma descoberta arqueológica em uma caverna antiga libera uma maldição que assombra os habitantes, levando-os à loucura e a atos inexplicáveis.

Canto das pedras: em lavras, uma descoberta arqueológica em uma caverna antiga libera uma maldição que assombra os habitantes, levando-os à loucura e a atos inexplicáveis.

Canto das Pedras

A poeira fina, um véu persistente, grudava nas pálpebras de Dona Odete a cada passo. O ar pesado da boca da gruta, úmido e com cheiro de terra molhada e algo mais… algo pungente, quase metálico, a fez tossir, apertando o lenço no nariz. Não era um cheiro bom, essa terra. Nem o lugar. Lavras, sim, era um pedaço de Minas Gerais que guardava suas memórias nas pedras enrugadas, nas casas de taipa que teimavam em resistir ao tempo, no sino da igreja que marcava o ritmo lento das vidas. Mas aquela gruta, no alto da serra, longe dos olhares curiosos e dos caminhos batidos, era um segredo guardado a sete chaves pela própria montanha.

Os rapazes da cidade, sempre em busca de aventuras para preencher os fins de semana entediantes, descobriram a entrada meio por acaso, seguindo um trilho de cabras desgarradas. Um deles, o mais audacioso, o neto do Seu Manuel, o ferreiro aposentado, mandou buscar os mais velhos para verem. E agora, ali estavam eles, os anciãos de Lavras, os guardiões silenciosos das histórias que ninguém mais contava.

O neto, um tal de Thiago, franzino mas com os olhos que brilhavam como brasas, liderava o grupo com uma lanterna improvisada. Ele era o primeiro a entrar. Em seguida, Seu Afonso, o pedreiro com as mãos calejadas de décadas de trabalho, e a própria Dona Odete, cujas pernas tremiam um pouco, mas a curiosidade a impelia adiante. No fundo da caverna, onde a luz da lanterna mal alcançava, algo chamou a atenção de Thiago. Uma forma lisa, polida, diferente das rochas brutas ao redor. Com cuidado, ele afastou a terra e revelou um objeto. Parecia um disco, de uma pedra escura e opaca, gravado com símbolos estranhos, em espiral, que pareciam se retorcer sob a luz.

Um arrepio percorreu a espinha de Dona Odete. Não era apenas o frio da gruta. Era um prenúncio.

Nas semanas seguintes, Lavras começou a mudar. Uma inquietude se instalou na cidade. Os sorrisos desapareceram, substituídos por olhares perdidos, por murmúrios ininterruptos. Primeiro, foram as pequenas coisas. Seu Afonso, o pedreiro, que sempre fora um homem ordeiro, começou a falar sozinho nas ruas, gesticulando para ninguém, as mãos construindo formas invisíveis no ar. As frases dele eram desconexas, cheias de palavras que ninguém entendia, como se estivesse conversando com um eco distante.

Depois, veio o Sr. Eustáquio, o sacristão da igreja. Um homem de fé inabalável, devoto e calmo. Um dia, foi encontrado no meio da praça, a cabeça raspada a zero, gritando versos de um livro antigo que ninguém da cidade jamais vira. As palavras, diziam alguns, eram um lamento eterno, um pedido desesperado de perdão por pecados que ele não cometeu.

Dona Odete sentia a mudança dentro de si também. A casa, antes um refúgio de tranquilidade, agora parecia um lugar de sombras dançantes. Ela passava horas olhando para as próprias mãos, como se fossem estranhas, e as vozes… as vozes começaram. Sussurros que se misturavam ao vento que uivava lá fora, às vezes chamando seu nome, outras vezes contando histórias antigas de sofrimento e desespero. Ela via coisas nos cantos dos olhos, vultos que sumiam quando ela virava a cabeça.

Thiago, o descobridor, foi o mais afetado. O garoto alegre e esperto se fechou em si. Passava os dias sentado no quintal, olhando para o céu, desenhando em pedaços de papel os mesmos símbolos em espiral que vira no disco na gruta. Ele falava que as pedras cantavam para ele, que as montanhas revelavam segredos terríveis, que o mundo era uma ilusão efêmera. Certa noite, ele desapareceu. Deixou apenas um bilhete na mesinha de cabeceira: “Tenho que voltar. As pedras chamam.”

Os mais velhos, Dona Odete entre eles, reuniam-se às escondidas, a luz de lamparinas tremeluzindo em seus rostos marcados pela preocupação. Sabiam que algo antigo fora despertado, algo que jazia adormecido por séculos nas entranhas da terra. A maldição. Essa era a palavra que eles temiam, que sussurravam em segredo, uma palavra que evocava histórias de tempos imemoriais, de povos esquecidos e de rituais sombrios.

“Aquele disco”, disse Dona Odete, a voz embargada, “não era para ser tocado. Não por nós. Ele guardava um lamento, um choro de quem foi esquecido. E agora, esse choro se espalhou por Lavras.”

A cidade parecia afogada em uma melancolia profunda, em uma loucura que se manifestava de formas variadas, mas sempre com o mesmo fundo de desespero. As pessoas se isolavam, conversavam com o nada, seus olhos refletindo um vazio assustador.

Dona Odete, sentada à janela, observava a noite cair sobre Lavras. A lua, pálida e distante, lançava uma luz fantasmagórica sobre as casas silenciosas. O vento trazia o cheiro da terra molhada da serra, e com ele, parecia trazer fragmentos do canto das pedras, um murmúrio incessante que a assombrava. Ela fechou os olhos, sentindo o peso de uma sabedoria antiga e terrível. A gruta, o disco, a maldição… tudo se entrelaçava em uma teia invisível que aprisionava Lavras. E ela se perguntava, em silêncio, se havia saída, se o canto das pedras um dia cessaria, ou se era apenas o prelúdio de um silêncio ainda mais aterrador.


Por: Ricardo Soares Guedes

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