A tradição de um feriado familiar que exige sacrifícios para garantir a prosperidade.
O Cheiro de Terra e Promessa
O ar em Santo Antônio de Jesus, naquele fim de agosto, cheirava a terra seca e a promessa. Era o cheiro que pairava, denso e esperado, prenunciando o Dia da Colheita, a celebração ancestral que mantinha a família Ribeiro ancorada à sua sorte. E a sorte, dona Helena insistia, era algo que se cultivava, que exigia cuidado, e, por vezes, renúncia.
Este ano, a renúncia pesava mais. A seca, que já mordia o sertão há meses, parecia querer se instalar também na região mais úmida, onde as terras da família eram mais generosas. Dona Helena, com seus olhos fundos que guardavam a sabedoria de sete gerações de agricultores, observava o céu com uma preocupação silenciosa que se refletia na rugosidade de suas mãos.
O centro da tradição era o “Corte do Primo”. Uma planta nativa, de folhas verde-escuras e flores pálidas, que crescia nas beiras do rio e, segundo a lenda, acumulava a energia da terra para o ano vindouro. A flor, colhida na aurora do Dia da Colheita, era depositada num pequeno santuário improvisado no terreiro da casa grande, guardada até o ano seguinte, quando seria substituída por uma nova. Era um ritual que, todos acreditavam, garantia a fartura da lavoura e a saúde da família.
O sacrifício, porém, não era apenas simbólico. A planta, um tanto rara e de crescimento lento, exigia uma dedicação especial. E para que a flor fosse, de fato, “a mais bela”, a que carregasse a maior força da terra, era preciso que alguém, no momento exato da colheita, lhe oferecesse algo valioso. Algo que representasse um desejo, uma esperança ou uma dívida quitada com a vida.
Lucas, o neto mais velho, o que tinha os olhos de avô e as mãos que pareciam tremer na hora de pegar o arado, sentia o peso da tradição como um manto sufocante. Aos vinte e dois anos, ele sonhava com a cidade, com a faculdade que sua mãe lhe prometia se conseguisse juntar o dinheiro. Mas o dinheiro, naquele ano, estava mais escasso que a água no açude. A colheita de milho e feijão mal daria para o sustento.
A noite anterior ao Dia da Colheita foi tensa. Dona Helena preparou o feijão preto e o torresmo, o aroma invadindo a casa, mas o sabor não trazia o conforto de sempre. Sentada à mesa, com a lamparina lançando sombras dançantes, ela olhava para Lucas.
“A flor precisa de algo puro, meu filho. Algo que venha do coração e que simbolize um recomeço.”
Lucas engoliu em seco. Ele sabia o que significava. O anel que sua mãe, em seu leito de morte, lhe entregara, um aro simples de prata que ela dizia ter sido herança de sua própria mãe. Um símbolo de amor, de promessa e, para ele, de dor e de memória.
“Vó”, ele começou, a voz embargada, “eu… eu não tenho mais nada de valor.”
Dona Helena o fitou, seus olhos escuros marejados. “O que importa, Lucas, não é o valor que o mundo dá às coisas. É o valor que elas têm para nós. Um desejo sincero é mais valioso que todo ouro do mundo.”
Ele sentiu um nó na garganta. O anel, guardado num pequeno saco de veludo no fundo de sua gaveta, era tudo o que lhe restava dela. Era a prova de que ele, um dia, também tivera um futuro prometido.
No dia seguinte, a família se reuniu no sítio. O sol nascia tímido, pintando o céu de um laranja pálido. Dona Helena, com sua bengala de madeira, liderou o grupo até a beira do rio. A planta do Primo, imponente, exibia uma única flor, de um branco quase etéreo, prestes a se abrir.
Enquanto os outros observavam em silêncio reverente, Lucas se afastou. Com o coração batendo descompassado, tirou o pequeno saco do bolso. A prata fria do anel em seus dedos. Hesitou. A imagem da mãe, sorrindo, lhe surgiu clara. E a necessidade, o desejo de um futuro diferente, pesaram mais que a saudade.
Com a mão trêmula, ele se aproximou da flor. O orvalho ainda lhe beijava as pétalas. Depositou o anel cuidadosamente entre elas, sentindo o metal frio afundar suavemente no miolo delicado. Uma lágrima solitária rolou por seu rosto, misturando-se ao cheiro de terra molhada e à promessa que ele, ali, havia selado.
Dona Helena, com um sorriso que mal disfarçava a dor em seus olhos, assentiu. Os demais voltaram seus olhares para a flor, agora adornada pelo brilho fugaz da prata. A tradição fora cumprida.
Mais tarde, na mesa farta, o silêncio era diferente. Havia uma calma tensa, como se todos esperassem a resposta da terra. Lucas, com as mãos ainda um pouco frias, sentia um vazio no dedo, mas também um estranho alívio. Ele não sabia se a colheita seria abundante. Não sabia se a cidade e a faculdade seriam seu destino.
Mas ele sabia que havia feito uma escolha. E enquanto o sol se punha, tingindo as nuvens de vermelho e roxo, e o cheiro de terra e promessa se misturava ao aroma adocicado das flores de ipê, Lucas se perguntava se a força da terra era capaz de transformar um sacrifício em um novo começo, ou se era apenas mais uma história contada para manter a esperança viva em tempos difíceis. A resposta, ele sabia, ainda estava para germinar.
Por: Ricardo Soares Guedes

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