O desaparecimento de um parente em uma casa que se move.

O desaparecimento de um parente em uma casa que se move.

O Balanço de Dona Florinda

O cheiro de café passado, adocicado pela canela que Dona Florinda insistia em polvilhar, era o alarme silencioso do amanhecer. Mas naquele dia, o aroma pairava na cozinha com uma solidão inédita. Maria Clara, com o sono ainda grudado nos cílios, esfregou os olhos. A casa, como sempre, parecia se acomodar em seu próprio ritmo. A madeira antiga rangia suavemente, as paredes sussurravam as histórias de gerações, e o soalho, bem, o soalho sempre dava um leve balanço, como um barco à deriva numa brisa calma. Era o “balanço de Dona Florinda”, o apelido carinhoso que deram à peculiar oscilação da velha casarão herdada da avó.

Dona Florinda, com seus cabelos brancos presos num coque frouxo e os olhos azuis que pareciam carregar o céu inteiro, era a âncora desse navio de madeira. Seu riso ecoava pelos cômodos, suas mãos enrugadas espalhavam afeto em cada gesto. Mas naquela manhã, sua poltrona de vime, junto à janela da sala, estava vazia. O jornal do dia, impecavelmente dobrado, jazia ao lado, como se ela tivesse acabado de se levantar para buscar mais um gole de café.

Maria Clara chamou, a voz ainda rouca: “Vó? Bom dia!”. Nenhuma resposta. O barulho das panelas, o assobio suave que anunciava o preparo do bolo de fubá, nada. A casa, no entanto, respondia à sua maneira. Um rangido mais profundo no andar de cima, um estalo vindo do sótão, como se a estrutura estivesse se espreguiçando.

O pânico, uma erva daninha sorrateira, começou a brotar no peito de Maria Clara. Ela vasculhou cada canto, cada armário, cada recanto onde a avó costumava se esconder para uma soneca rápida ou para ler seus romances. O quarto de Dona Florinda estava arrumado, a cama feita com a precisão de um oficial. Apenas o cheiro fraco de lavanda, seu perfume preferido, persistia no ar.

Os dias seguintes se arrastaram num borrão de desespero e incredulidade. A polícia veio, os vizinhos ofereceram condolências e olhares apreensivos. A casa, sob o escrutínio de estranhos, parecia mais viva do que nunca. À noite, quando todos dormiam, ela voltava a murmurar seus segredos, a se mover em sua dança silenciosa. Maria Clara, encolhida no quarto, sentia as paredes pulsarem, o chão oscilar sob seus pés, e se perguntava se o balanço não era apenas o ar que a casa respirava, mas algo mais.

A memória da última conversa surgiu, nítida e dolorosa. “Às vezes, Clara, sinto que essa casa me chama”, Dona Florinda dissera, os olhos fixos na linha onde o céu encontrava as árvores do quintal. “Um chamado antigo, que só quem tem as raízes profundas entende.” Na época, Maria Clara sorrira, atribuindo a fala à fantasia de uma idosa. Agora, a cada novo rangido, a cada balanço mais acentuado, o sorriso se desfazia em um temor crescente.

Uma tarde, enquanto o sol pintava o céu de laranja e púrpura, Maria Clara estava sentada na poltrona de Dona Florinda. O cheiro de café e canela pairava, mais intenso. Ela fechou os olhos, permitindo-se sentir o balanço familiar da casa. E, por um instante fugaz, pareceu ver um vulto translúcido, a silhueta de sua avó, acenando do limiar de uma porta que não existia antes. O balanço tornou-se mais forte, um embalo quase rítmico, e então, suavemente, diminuiu. O cheiro de lavanda se intensificou, misturando-se ao de terra molhada, e o silêncio retornou, um silêncio carregado de perguntas sem resposta. Dona Florinda se fora, levada, talvez, pelo próprio chão que a sustentava. E a casa, em seu eterno movimento, guardava o segredo, um convite silencioso para Maria Clara também aprender a dançar com o que a terra oferece.


Por: Beatriz Almeida Vianna

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