O Segredo de Lola
O cheiro de café coado e pão de queijo ainda pairava no ar da manhã quando Sofia, com seus oito anos e um turbilhão de cachos rebeldes, desceu as escadas rangentes. A casa da avó, em um bairro tranquilo de Recife, era um labirinto de memórias, cada móvel, cada objeto, contando uma história silenciosa. Mas a mais intrigante delas, sem dúvida, era Lola.
Lola era uma boneca de pano antiga, com olhos de botões desbotados e um vestido de renda amarelado pelo tempo. Estava sentada em uma poltrona de veludo puído no canto da sala de estar, sempre no mesmo lugar, como uma sentinela imóvel. Sofia a amava de paixão, não como um brinquedo qualquer, mas como um ser especial, dotado de uma sabedoria incomunicável.
Era à noite que a magia, ou o que quer que fosse, acontecia. Quando o silêncio da casa se adensava, pontuado apenas pelo murmúrio distante da cidade e o farfalhar das folhas lá fora, Sofia jurava ouvir. Eram sons baixos, quase imperceptíveis, como o vento brincando em uma fresta, mas para ela, eram vozes. Vozes que pareciam vir de Lola.
No início, eram fragmentos. Um nome: “Elisa”. Um lugar: “O engenho”. Uma sensação: “A saudade”. Sofia, ainda pequena para compreender a profundidade, apenas registrava, guardava como tesouros em seu peito. Deitada em sua cama, sob a luz bruxuleante do abajur, imaginava Elisa, a dona original de Lola, talvez.
A avó, Dona Aurora, era uma mulher de poucas palavras e muitos gestos. Seus olhos azuis, outrora vibrantes, agora carregavam a melancolia de quem já viu muito. Sofia tentou falar sobre os sussurros de Lola, mas Dona Aurora apenas balançava a cabeça, um sorriso triste desenhado nos lábios finos. “Bonecas são feitas para brincar, minha filha. E para guardar segredos das crianças.”
Mas Lola guardava segredos que não eram dela. Eram segredos antigos, sussurrados por gerações. Sofia começou a juntar as peças. Um dia, enquanto folheava um álbum de fotos empoeirado, encontrou uma imagem de uma jovem sorrindo timidamente, com os mesmos olhos de botões que Lola possuía. Ao lado, uma legenda desbotada: “Elisa – 1938”.
Os sussurros se tornaram mais claros com o tempo. Eram conversas, fragmentos de desabafos. Falavam de um amor proibido, de uma paixão que precisou ser escondida. De um menino do engenho, chamado Jonas. Falavam de uma promessa quebrada, de uma partida sem volta. E de um destino incerto.
Sofia sentia a dor de Elisa, a tristeza profunda que emanava da boneca. Começou a notar semelhanças entre as histórias dos sussurros e os olhares perdidos da avó quando olhava para o horizonte. Seria possível? Seria Elisa sua bisavó? E Dona Aurora, o fruto de um amor que nunca floresceu completamente?
Certa noite, os sussurros foram mais intensos. A voz de Elisa soava embargada, quase um lamento. “Nunca te esqueci, Jonas. A vida nos separou, mas o coração ficou.” Sofia sentiu um nó na garganta. Queria abraçar Lola, dizer que entendia, que não estava sozinha.
Ao amanhecer, Dona Aurora entrou no quarto de Sofia com uma bandeja de café da manhã. Seus olhos encontraram os de Sofia, que segurava Lola em seus braços. “Você a ama muito, não é?”, disse a avó, a voz um pouco mais forte. Sofia assentiu. “Ela me conta histórias, vovó.”
Dona Aurora sentou-se na cama, e pela primeira vez, o véu de melancolia em seus olhos pareceu se dissipar um pouco. “Algumas histórias precisam ser contadas. Outras, guardadas. Mas todas deixam uma marca.” Ela pegou a mão de Sofia e a entrelaçou nos dedos frios de Lola. “Esta boneca pertenceu à minha mãe. Elisa. Ela amou alguém muito, Sofia. Alguém que teve que ir embora. A vida nem sempre nos dá o que queremos, mas nos ensina a continuar.”
As palavras da avó não desvendaram completamente os mistérios de Lola, mas trouxeram um conforto silencioso. Sofia olhou para a boneca com outros olhos. Não mais apenas como um receptáculo de segredos, mas como um elo, um testemunho vivo de amores e perdas que moldaram a família.
Naquela noite, os sussurros de Lola foram mais suaves. Eram mais memórias do que lamentos. Eram lembranças de um amor que, mesmo que não consumado, existiu. Sofia adormeceu com Lola aninhada em seus braços, a pergunta pairando no ar, como a bruma fina sobre o Recife antigo: quais outros segredos seriam revelados, e quem mais ouviria as vozes que o tempo insistia em sussurrar?
Por: Ricardo Soares Guedes

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