O Silêncio que Griteja em Biritiba Mirim
A poeira vermelha, companheira fiel das estradas vicinais de Biritiba Mirim, parecia ter se infiltrado em cada poro da terra, em cada folha seca, e agora, suspeitava eu, em cada pensamento meu. O sol da tarde castigava, transformando o ar em um véu espesso de calor e mosquitos. Fui chamado. Um corpo. Zona rural. A rotina, por mais cinzenta que seja em uma cidade pacata como esta, de repente ganha a tonalidade sombria do inusitado.
O Citroën azul, meu fiel companheiro de tantas e tantas ocorrências, rangeu ao parar. A cena, embora esperada, sempre impacta. Um amontoado de terra revolvida, um matagal ralo que mal disfarçava a nudez do chão, e ali, meio escondido, um corpo. Não era jovem, mas também não parecia velho. Vestia roupas simples, gastas pelo tempo e pela vida. O rosto virado para o céu, em uma expressão que eu ainda não conseguia decifrar – resignação? Surpresa? Medo?
Chamei os peritos. As sirenes, que para nós aqui em Biritiba são raras e anunciadoras de drama, ecoaram pelo silêncio do campo. O sargento Almeida, sempre com aquele ar de quem já viu de tudo, mas que nunca se acostuma de verdade, já estava isolando a área. Olhos curiosos, de vizinhos distantes e animais assustados, espreitavam por entre as árvores. O cheiro de terra molhada pela manhã e, agora, de algo mais… metálico.
O delegado Rodrigues chegou, o terno levemente amarrotado pelo calor. Trocamos poucas palavras. A profissão nos ensinou a economizar a fala em momentos como este. Cada detalhe era um fio solto em um novelo complexo. A posição do corpo, a ausência de sinais óbvios de luta, a terra que parecia ter sido remexida por algo mais do que o vento.
Comecei a caminhar em volta, meus sapatos afundando levemente no solo. O sol, que antes era um incômodo, agora parecia iluminar com uma crueldade desnecessária os contornos da tragédia. Quem era ele? Por que ali? Biritiba Mirim é um lugar onde todos se conhecem, ou pelo menos acreditam conhecer. Um forasteiro, talvez? Mas o que um forasteiro faria tão longe da estrada principal, em um pedaço de terra esquecido?
Uma senhora idosa, Dona Aurora, com o rosto vincado como uma folha seca, veio se aproximar, os olhos marejados. Ela morava na propriedade vizinha. “O senhor Ricardo”, disse ela, a voz embargada, “Eu o vi semana passada. Estava perto do córrego. Falou pouco, mas parecia um homem de bem. Tinha um ar cansado, sabe? Como se carregasse o mundo nas costas.”
Um homem de bem. Cansado. O mundo nas costas. Palavras que se encaixavam naquele corpo inerte, mas que não explicavam o porquê de seu repouso final ser em meio à poeira e ao mato. A perícia recolheu amostras, fotografou, mediu. O corpo, logo seria levado para o IML. Mas a verdadeira investigação, a busca pela verdade, seria feita aqui. Nas histórias sussurradas, nos olhares fugidios, nos silêncios que, em Biritiba Mirim, gritavam mais alto que qualquer palavra.
Enquanto o sol começava a se pôr, tingindo o céu de laranja e roxo, um espetáculo agridoce, eu ainda estava ali. O corpo não era mais um amontoado de carne e osso, mas um mistério. Um mistério que se aninhava na terra vermelha de Biritiba Mirim, esperando para ser desvendado. E eu, Ricardo Soares Guedes, com a poeira grudada na pele e o peso da curiosidade no peito, estava pronto para escutar. Sempre pronto para escutar o que o silêncio tinha a contar.
Por: Ricardo Soares Guedes

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