O Canto da Onça-D’água

O Canto da Onça-D’água

A canoa de Jaci deslizava silenciosamente sobre as águas escuras e tranquilas do igarapé, um espelho negro refletindo o dossel verde-esmeralda da Amazônia. O sol da tarde filtrava-se em feixes dourados, iluminando o pólen que dançava no ar e a curiosidade que pulsava em seu peito. Há anos, boatos sussurravam sobre um caminho sinuoso, um fio d’água que levava a um lugar que o tempo parecia ter esquecido. Jaci, um ribeirinho de olhar persistente e mãos calejadas, sentia o chamado da descoberta, uma mistura de respeito e temor pelo que poderia encontrar.

O igarapé, a princípio, mantinha sua familiaridade. A mata se apertava nas margens, exalando o perfume úmido da terra e das folhas em decomposição. Pássaros de plumagem vibrante cruzavam o céu em voos curvos, e o murmúrio constante dos insetos preenchia o silêncio. Mas, à medida que avançava, Jaci notou uma mudança. As árvores se tornavam mais antigas, mais imponentes, seus troncos cobertos por uma cortina de cipós grossos e orquídeas exuberantes. O ar adquiriu um peso diferente, um prenúncio de algo sagrado e antigo.

Então, o igarapé se alargou, abrindo-se em uma clareira aquática de beleza estonteante. No centro, uma cascata prateada descia por rochas cobertas de musgo, alimentando um lago de águas cristalinas. E ali, na margem, surgiram rostos. Rosto de homens e mulheres de pele bronzeada, com olhos escuros e penetrantes que observavam Jaci com uma intensidade que o fez hesitar. Suas vestimentas eram feitas de fibras naturais e adornadas com penas e sementes, um testemunho de uma vida desconectada do mundo exterior.

Com o coração batendo forte, Jaci desceu da canoa. Foi recebido por um ancião de cabelos brancos como a espuma da cachoeira, que o conduziu até a comunidade. Eles viviam em casas construídas com barro e madeira, integradas à natureza de forma harmoniosa. Aos poucos, Jaci compreendeu sua história. Eram os Kuaru, um povo que habitava aquelas profundezas há incontáveis gerações, mantendo-se oculto do mundo exterior. Sua existência, no entanto, era regida por um poder ancestral: a Onça-D’água.

O ancião, com uma voz que ecoava a sabedoria das eras, explicou. A Onça-D’água era a divindade que emanava das águas profundas, a guardiã da vida e da fertilidade da floresta. Sua força era imensa, capaz de nutrir e proteger, mas também exigente. Para manter o equilíbrio, para garantir que as chuvas viessem e que os rios não secassem, para que a caça fosse farta e as frutas madurascessem, a Onça-D’água demandava oferendas. E essas oferendas eram os sacrifícios.

Jaci sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Ele havia ouvido lendas, contos de povos antigos que ofereciam o que tinham de mais precioso. Agora, estava diante da realidade. A cada ciclo de seca, um filho de sua comunidade, escolhido pela vontade da divindade, era levado às águas profundas, como um presente para garantir a sobrevivência de todos.

Nos dias que se seguiram, Jaci observou os rituais. Viu a seriedade nos olhos dos pais quando um nome era sorteado. Sentiu a melancolia no ar durante os cantos fúnebres antes do sacrifício. Era uma forma de vida que o assustava, mas também o fascinava. Os Kuaru não eram cruéis, eram desesperados. Sua sobrevivência estava intrinsecamente ligada à benevolência da Onça-D’água, e eles cumpriam seu papel com a resignação de quem sabe que o mal maior seria a extinção.

Em uma noite iluminada pela lua, enquanto as crianças dormiam e os adultos entoavam cânticos suaves, Jaci caminhou até a margem do lago. A água parecia vibrar com uma energia latente. Sentiu um chamado, uma voz sem palavras que parecia emanar das profundezas. A Onça-D’água.

Ele pensou em sua própria comunidade, em sua família. O medo que sentiu pelos Kuaru se transformou em uma reflexão profunda. Até onde iria a necessidade de proteger aqueles que amamos? Qual o preço da vida em um mundo tão frágil quanto a Amazônia?

Jaci permaneceu ali por um longo tempo, imerso no mistério e na sabedoria daquele lugar. Ele não era um guerreiro, nem um juiz. Era apenas um homem que vira algo que o mudaria para sempre.

Ao amanhecer, desceu à sua canoa. O ancião e alguns Kuaru o observavam em silêncio. Jaci fez um sinal de cabeça em agradecimento e, com um remada firme, começou a navegar de volta. Levava consigo não apenas a história de um povo isolado, mas a compreensão de que, nas profundezas da floresta, a vida e a morte dançavam em um ciclo antigo, regido por forças que a razão humana muitas vezes não consegue alcançar. O canto da Onça-D’água ecoaria em seus ouvidos, um lembrete constante da fragilidade da existência e do preço que, por vezes, é preciso pagar para que a vida, em toda a sua majestade e mistério, continue a fluir.


Por: Isabela Fernandes Couto

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *